quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

o lar.

A sala principal da Casa da Música, no Porto, chama-se Suggia (lê-se “sugía”, não “sújia”). Nascida em meados do século XIX, Guilhermina Suggia desafiou a sua época por ser a primeira mulher a tocar violoncelo entre as pernas, o que, não obstante usasse um vestido que arrastava no chão e não permitia delinear os contornos do corpo ou mostrar a pele, chocou muitos puristas até à sua morte, já no século XX.
Guilhermina morreu de cancro aos 65, um ano depois do marido, que tinha morrido de cancro também. Mas nem toda a gente morre depois de um cancro diagnosticado, e, em muitos casos, é possível detectar, tratar e viver depois de se ter a doença. Sobretudo se não se tiver medo de a enfrentar. Sobretudo se se for forte. E se se tiver sorte.
Na última vez que fui à terra visitei uma amiga antiga, velhota, a quem tinha comprado uma caixa de biscoitos para acompanhar o chá. Sobrevivente a um cancro da mama e a um cancro da boca (ambos, que me lembre, detectados há mais de 15/20 anos), encontrei-a numa sala cheia, sentada e alinhada em filas de dez, costas com costas, ladeada por uma amiga intrigada por não perceber quem eu era, e por um amigo com quem falava, volta e meia, e que lhe respondia que sim.
Fui contando quem eu era, e quem era ela, e os meus, e os dela, e a minha terra, e a dela, e os bolos que ela fazia, e os que eu comia. Não se lembrava. Aliás, não sei se já vos aconteceu, mas eu, e a minha mãe, que me acompanhou, vimos desabrochar a memória, minuto a minuto, como uma flor fechada à espera de luz. E o amigo da minha amiga, de mão dada, aquele que estava do lado oposto à senhora intrigada, volta e meia, acreditem, chorava de felicidade, a acenar que sim, que ele também se lembrava do que eu era, e ela, e nós, e a terra, e as nossas palavras brilhavam, e os olhos pareciam faiscar.
Margarida Figueiredo Dias, médica ginecologista, escreve num artigo da revista Olhares (que roubei há uns meses numa clínica onde vou fazer uns exames que não têm que ver com cancro) que esta doença, especificamente o cancro da mama, ainda mata todos os dias quatro mulheres. Aliás, amanhã, onze mulheres portuguesas vão receber a informação de que têm cancro da mama e quatro vão morrer vítimas desta doença. Parece que é assim todos os dias. E que dá para inverter, mais que não seja, para pôr uma almofada debaixo da cabeça de alguém quando já não há nada a fazer. Foi assim que a minha cabeleireira tratou a filha da cliente, nos meses galopantes de luta contra o cancro no cérebro. E é assim que a minha esteticista põe bonitas as senhoras do lar, velhinhas, onde vai fazer voluntariado. (É mesmo verdade, tendo rodear-me do melhor do mundo.)
Ver o Goucha, numa sala cheia, com outros sobreviventes à espera da hora do chá pode ser feito a sorrir, pelo menos uma vez por ano. Sorriem eles e nós também. Às vezes até, quem visitamos quer devolver-nos os biscoitos por gratidão, e damos por nós e quase queremos aceitar.
Há uma pirâmide de prioridades no peito de cada mulher. Cabe-nos, procurá-la, sem medos, e dar-lhe a inclinação certa. Visitar alguém, um lar, porque não. Nem precisa de ser alguém doente. Às vezes basta ser alguém.
Bom ano novo.