sábado, 24 de outubro de 2015

sábado.

A bicicleta grande está na cozinha; não tivemos forças para a guardar no canto dela. Já bastou erguê-la em braços para descer os dois andares quando a senhora lavava as escadas e nos olhou com ar reprovador: “Não se preocupe, senhora com ar reprovador. Quando regressar a estas escadas a tresandar a lixívia vou voltar a menosprezar as minhas hérnias, e nem uma roda tocará no chão.”

Saímos às dez e voltámos às duas. A roupa que usámos ficou ensopada e ensurrada. Percorremos quilómetros a fazer corridas, a subir e a descer passeios. Fomos ao supermercado em Odivelas, à ótica no Lumiar, a três parques diferentes ora num ora noutro lado. Andámos com as bicicletas no metro, subimos e descemos pontes, subimos e descemos viadutos. Descobrimos na Quinta das Conchas uns escorregas em ziguezague que fazem lembrar o aquaparque e um comboio misturado com os baloiços. Fizemos um piquenique para aguentar até ao almoço. Fizemos lasanha quando chegámos a casa. Comemos a lasanha à bruta e demos de comer à toalha (como é que é, mãe, o molho de tomate sai com fairy?). Saltámos a sopa.

Um dos dois (que não é rapaz) precisava mesmo de uma sesta. Acordámos às cinco, fomos para a Caparica. Tomámos banho de mar no outono, fizemos um túnel onde cabia a retroescavadora e brincámos na areia até ao Sol se pôr. Outro piquenique nas escadas da esplanada a ver as ondas. Fomos ver a ponte que suporta a linha do comboio que percorre as praias e andámos a passear nos carris. Vimos mosquitos à nossa volta e sentimos umas picadelas. Soltámos qualquer coisa sobre estarmos a gostar mesmo deste dia. Em casa, tomámos um duche juntos e cada um tratou das babas do outro com Fenistil. Jantámos a falar com os primos de Leiria pelo Skype. Lemos DOIS capítulos do dicionário por imagens do corpo humano em vez de um. Pedimos mais um mano. Um dos dois (que não é rapaz) rebolou a rir com a pergunta. Ouvimos o Carlos Paião e cantámos a Cinderela aldrabada (“ela corou um pouquinho e respondeu baixinho sou uma panela”). Rimos muito e vimos onde cada um tem cócegas. Parámos quando estávamos a fazer muito barulho. Contámos a história do Henrique que tinha um comboio que levava os meninos às praias. Fechámos a luz. Precisámos de voltar à casa de banho duas vezes, de trocar de T-shirt uma e tivemos frio primeiro e calor a seguir. Há 20 minutos que adormecemos.

Tenho oito mordidas de bichos (uma delas na testa), a canela esfolada, dois arranhões grandes na coxa, pernas, braços e costas a doer, e areia por todo o apartamento. Mas voltava a fazer tudo outra vez.
Amanhã talvez fiquemos por casa.

(Publicado no meu facebook em 24 de outubro de 2014)

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

outono.

Está alguém a fazer marmelada por aqui. Não sejam marotos, é marmelada a sério. Há um cheiro doce a subir comigo as escadas do meu prédio.

Quando eu era pequenina – e o meu pai me virava de cabeça para baixo a tocar na minha barriga “Pimperlim casou maria, pimperlim com quem seria…” – nesta altura do ano havia sempre marmelada. Eu era gulosa, gostava de rapar tudo o que eram panelas onde se faziam doces, e, única menina daquele lado da família, saí mimada. O meu pai chamava-me "pantomineira". Cresci e descobri que era pantomimeira, com M, e a coisa perdeu um pouco a graça, já bem depois de ser pesada demais para fazer de guitarra.

Quando vim para Lisboa, trouxe comigo a arca onde os meus pais tinham o telefone. Costumava sentar-me nela quando falava lá na nossa casa e, como os meus pés não chegavam ao chão, gostava de oscilar as pernas para a frente e para trás enquanto riscava a lista telefónica, as páginas amarelas e a agenda onde estava o número do nosso médico de família, que vinha lá sempre que estávamos doentes, dos avós, dos tios do Porto e dos amigos dos nossos pais. Volta e meia, resmungavam comigo, lá estava eu a "esmodricar" o móvel com os calcanhares. Hoje, não vejo nada nem "esmodricado", nem sequer esmordicado, devem ter restaurado isto, e já chego com os pés ao chão nesta arca que aqui tenho.

Quando, ao fim de semana, o forno começava a cheirar bem, silenciosamente todos desejávamos que a coisa desse para o torto, que a forma estivesse mal untada, que aquilo se desfizesse ao virar para o prato, para termos um pretexto, pobre mãe, de provar o bolo antes da hora combinada. Senão, teríamos de esperar pelo final do almoço para o comer. Atualmente, “encetar” os bolos não tem metade da graça que “encertá-los”.

Não havia cá batatas-palha de pacote, usavam-se batatinhas a sério, cortadas em palitos e fritas durante uma manhã inteira. Precisei de crescer uns trinta anos e uns vinte quilos para perceber o que custaria efectivamente àquela mãe chegar à quantidade necessária para fazer um bacalhau à brás para cinco, lutando contra três miúdos a irem à vez lá abastecer-se às mãos-cheias. O mesmo acontecia com as cerejas descaroçadas e sem pés (ou “pauzinhos”), usadas para fazer doce: o monte das cerejas na panela volta e meia descia, e lá continuava ela, sentada na mesa da cozinha, a ver se o monte atingia a altura suficiente para ser levado ao lume (agora que falo nisso, talvez por essa razão fizesse tantas vezes aquilo à noite, estávamos nós já na cama, sossegaditos).

Sempre achei que ninguém desconfiava que eu gostava de descascar e comer a parte panada dos bifes que acompanhavam o arroz malandrinho, até que o meu pai resolveu, em plena refeição, dizer “ora vamos cá ver se estes panadinhos ficaram bem feitos do outro lado”. Morri de vergonha: do outro lado, claro, faltava a “casca”. Também nunca achei que a minha mãe soubesse que eu comia tulicreme às colheres, até ela ter decidido deixar de o comprar para barrar o pão (eram papo-secos, bolinhas ou vianinhas, mas para nós eram sempre pães), que também tinha “casca” e não “côdea”, como hoje. O meu irmão preferia pão barrado com doce e o outro, pão com marmelada. Ambos calçavam sapatilhas e não ténis.

A marmelada da avó enrijecia com uma rapidez fantástica, que só o dobro da quantidade necessária de açúcar poderia permitir. Ficava tão rija que era possível transportá-la em cestas, uns dias depois, umas tigelas em cima das outras, e poucas vezes se amolgava.

À refeição, ela costumava fazer bolinhas com as miolas da broa de milho. Era sempre fácil perceber onde tinha estado sentada. Hoje, também dou por mim a fazer o mesmo com as migalhas. Mas todos sabem que não é a mesma coisa fazer bolinhas com migalhas e bolinhas com miolas. É certamente por essa razão que me vou sentando onde calha.

E não sei bem porquê, mas deixei de comer marmelada.

(Publicado pela primeira vez em 14 de outubro de 2014)