Está alguém a fazer marmelada por aqui. Não sejam marotos, é marmelada a sério. Há um cheiro doce a subir comigo as escadas do meu prédio.
Quando eu era pequenina – e o meu pai me virava de cabeça para baixo a tocar na minha barriga “Pimperlim casou maria, pimperlim com quem seria…” – nesta altura do ano havia sempre marmelada. Eu era gulosa, gostava de rapar tudo o que eram panelas onde se faziam doces, e, única menina daquele lado da família, saí mimada. O meu pai chamava-me "pantomineira". Cresci e descobri que era pantomimeira, com M, e a coisa perdeu um pouco a graça, já bem depois de ser pesada demais para fazer de guitarra.
Quando vim para Lisboa, trouxe comigo a arca onde os meus pais tinham o telefone. Costumava sentar-me nela quando falava lá na nossa casa e, como os meus pés não chegavam ao chão, gostava de oscilar as pernas para a frente e para trás enquanto riscava a lista telefónica, as páginas amarelas e a agenda onde estava o número do nosso médico de família, que vinha lá sempre que estávamos doentes, dos avós, dos tios do Porto e dos amigos dos nossos pais. Volta e meia, resmungavam comigo, lá estava eu a "esmodricar" o móvel com os calcanhares. Hoje, não vejo nada nem "esmodricado", nem sequer esmordicado, devem ter restaurado isto, e já chego com os pés ao chão nesta arca que aqui tenho.
Quando, ao fim de semana, o forno começava a cheirar bem, silenciosamente todos desejávamos que a coisa desse para o torto, que a forma estivesse mal untada, que aquilo se desfizesse ao virar para o prato, para termos um pretexto, pobre mãe, de provar o bolo antes da hora combinada. Senão, teríamos de esperar pelo final do almoço para o comer. Atualmente, “encetar” os bolos não tem metade da graça que “encertá-los”.
Não havia cá batatas-palha de pacote, usavam-se batatinhas a sério, cortadas em palitos e fritas durante uma manhã inteira. Precisei de crescer uns trinta anos e uns vinte quilos para perceber o que custaria efectivamente àquela mãe chegar à quantidade necessária para fazer um bacalhau à brás para cinco, lutando contra três miúdos a irem à vez lá abastecer-se às mãos-cheias. O mesmo acontecia com as cerejas descaroçadas e sem pés (ou “pauzinhos”), usadas para fazer doce: o monte das cerejas na panela volta e meia descia, e lá continuava ela, sentada na mesa da cozinha, a ver se o monte atingia a altura suficiente para ser levado ao lume (agora que falo nisso, talvez por essa razão fizesse tantas vezes aquilo à noite, estávamos nós já na cama, sossegaditos).
Sempre achei que ninguém desconfiava que eu gostava de descascar e comer a parte panada dos bifes que acompanhavam o arroz malandrinho, até que o meu pai resolveu, em plena refeição, dizer “ora vamos cá ver se estes panadinhos ficaram bem feitos do outro lado”. Morri de vergonha: do outro lado, claro, faltava a “casca”. Também nunca achei que a minha mãe soubesse que eu comia tulicreme às colheres, até ela ter decidido deixar de o comprar para barrar o pão (eram papo-secos, bolinhas ou vianinhas, mas para nós eram sempre pães), que também tinha “casca” e não “côdea”, como hoje. O meu irmão preferia pão barrado com doce e o outro, pão com marmelada. Ambos calçavam sapatilhas e não ténis.
A marmelada da avó enrijecia com uma rapidez fantástica, que só o dobro da quantidade necessária de açúcar poderia permitir. Ficava tão rija que era possível transportá-la em cestas, uns dias depois, umas tigelas em cima das outras, e poucas vezes se amolgava.
À refeição, ela costumava fazer bolinhas com as miolas da broa de milho. Era sempre fácil perceber onde tinha estado sentada. Hoje, também dou por mim a fazer o mesmo com as migalhas. Mas todos sabem que não é a mesma coisa fazer bolinhas com migalhas e bolinhas com miolas. É certamente por essa razão que me vou sentando onde calha.
E não sei bem porquê, mas deixei de comer marmelada.
(Publicado pela primeira vez em 14 de outubro de 2014)
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