segunda-feira, 30 de novembro de 2015

a eminência tenar.

Como reconhecerias o teu filho se to tirassem? Olho para a foto e pergunto-me. Acho que isto acontece quando se tem os filhos longe: estamos sempre a tentar descobri-los onde os possam captar. A RTP está a cobrir um evento em Madrid? Fico colada ao plasma a tentar que um acaso o apanhe. Uma revista mostra o Reina Sofía? Perscruto a malta a olhar para as obras de arte, e tiro-lhes as medidas: este não, este também não, este tão-pouco.

Do que precisas de ver, Alda? Até onde to têm de mostrar para teres a certeza de que é ele?

Na foto, a promover a jornada onde ontem brilhaste, um jogador de goalball defende. És tu, filho? Responde. A foto não responde. As fotos respondem tão mal às mães com saudades.

Ele tem um sinal ali, sabes que existe, sempre existiu, sabes que dificilmente sairá. Mas na foto não se vê o sinal. E há o Photoshop que apaga sinais, também valeria de pouco. As pernas… ah, essa posição de defesa é dele, tenho a certeza, tenho quase a certeza, acho que é, pode ser, deixa ver melhor.
Os ténis, claro, amarelo-gritante, lembro-me tão bem, fui eu que os comprei, são dele de certeza. A perna meio alçada com os ténis que eu lhe comprei. Pões sempre a perna assim. Defendes tão bem. Pena não dar para perceber a marca dos ténis. E não defendem todos assim, os que defendem bem?

A barriga, de fora, magra. Emagreceste tanto, filho, estás tão em forma. Serás tu? É tua a barriga de fora? Mais acima, as mãos. Tudo claro. As mãos.

Pena. Tenho pena, meu filho, que não te tenham fotografado para isto. Assim, ver-te-ia. E tenho saudades de te ver, filho. Não há Skype que apague estas saudades de te encontrar de vez em quando, quando não estou à espera, tal como quando vinhas mais cedo das aulas e estavas no teu quarto quando eu chegava com o teu irmão.
Talvez um dia. Tens fotos igualmente bonitas.
Parabéns por ontem.


(Publicado no meu facebook a 30 de novembro de 2014)

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

os super-heróis.

Chove a potes, e ela tem um casaco de malha vermelho e três rolos de papel nos braços. Olha para o céu. Caraças, como chove. Não se lhe vêem botas, não se lhe vê guarda-chuva, não tem impermeável sequer. Até onde irá aquela senhora com os rolos de papel, motivos de Natal, em que estado chegará aquele papel às prendas que vai embrulhar. O que leva uma mulher de casaco de malha, num dia em que o céu desaba, a comprar três rolos de papel com estrelinhas, e pais-natais, e neve. Talvez vá esperar aqui no metro, até que a chuva amaine. Não espera, deve estar com pressa. Não esperou.

No cruzamento em frente a Chelas, um senhor de gabardina amarela empoleirado num escadote tira a chave de fendas e mexe no semáforo desligado. Capuz na cabeça, com os óculos a escorrer como pára-brisas fustigados com bátegas, vai compondo. Não vais apanhar um choque, pá? Isso aí não é electricidade? Não seria de te ires abrigar ali na bomba até que a tempestade abrandasse? Não: faz o seu trabalho, continua, concentrado como se nada fosse, sem guarda-chuva, ensopado. Um pinto a compor o semáforo.

No dia nacional do pijama, os miúdos e os graúdos vestem-se a preceito para irem à creche. A diversão de pantufas é garantida, e debaixo de telha até tem piada sentir-se lá fora a chuva, que chove tanto lá fora, e nós aqui dentro quentinhos, a fazer guerra de almofadas e de ursos com as educadoras vestidas para dormir. Tão mal lá fora e nós tão bem aqui dentro, tão quentinhos. E depois há os que saem e vão de pijama à natação, no fundo do
quarteirão. Vão sem guarda-chuva, com as capas plásticas, e sorriem pelo dia do pijama. Sorriem mesmo. E há os que vão de pijama até ao carro dos pais, e não têm galochas que os protejam, que tapem a flanela do fundo das calças, que impeça o fundo das calças de ficar ensopado. Ficam ensopados, e sorriem pelo dia do pijama. Chegam ao carro e chove, ai chove tanto; parece que o guarda-chuva do homem-aranha quer voar, ficam com os óculos salpicados, os cabelos molhados, brrrr, que frio. E, enquanto se lhes põe o cinto, dizem que adoraram e sorriem. Eles sorriem apesar da chuva.

Quando for grande quero ser assim: impermeável.

(Publicado no meu facebook a 20 de novembro de 2014)

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

folhas caídas.

Pára. Não precisas de escovar o cabelo mil vezes à frente do secador até que ele fique esticado e seco. Porque fazes isso? Não ficas bem sem cabelo, tens a cabeça grande, tens as orelhas grandes, és grande, monstruooooosa. Precisas de cabelo grande, comprido. Topas?

Já sabes o que acontece no outono, todos os anos é isto. Pára de olhar assustada para essa escova. Também não ficas bem assim, assustada, ficas feia. Sorri e esquece lá isso, ainda tens tanto cabelo. Então desde que deixaste de o pintar até parece que tens mais, não é? Vais nada ficar careca; não se vê nada o couro cabeludo; é impressão tua.

Já reparaste que tens caracóis? Quando eras bebé também os tinhas. Tens caracóis e ficas linda a sorrir, não é? Então porque não sorris? Deixa lá a porcaria dos piolhos, pára o stresse, vai mas é ler um romance qualquer. Não te chegou um livro ontem, da Wook? E já o leste, já? Não, pois não? Vale-te de muito estares aí a olhar para o cabelo. Para de o cofiar, carago. Aproveita o tempo. Esse espelho estava a precisar de uma limpadela. E essa pele? Vais para a cama maquilhada outra vez, não? Pior do que uma tipa sem cabelo é uma tipa sem cabelo e sem pestanas: vai lá limpar a cara!

Ainda tens muito, descansa. Quem olha para ti nem te vê o cabelo… Já viste tão alta que és? Quando muito vêem-te os cabelos na camisola, nas costas, aqueles que te vão caindo ao longo do dia quando puxas o cabelo para trás enquanto pensas. Também não paras quieta, não há-de o cabelo cair. Vê se paras quieta, mas é. 

Está lá sossegada. Vai dormir. Põe uma ampola daquelas para a queda do cabelo dos homens e vai dormir. Sim usa as dos homens, e vai dormir. Lê qualquer coisa para descomprimir e não penses mais isso. Faz uma trança, vês como tens cabelo para uma trança? Põe uma ampola e faz uma trança.

O teu mal é sono.

(Publicado no meu facebook a 11 de novembro de 2014)

terça-feira, 3 de novembro de 2015

onomatopeia.

Não havia horta, apenas um quintal com cravos e catos nas traseiras que deitavam para a casa da Dona Conceição. Quando íamos visitar a avó, trazíamos o resto das fritas (como ainda hoje o meu pai chama às rabanadas, às filhós, às fatias douradas, aos sonhos e às pataniscas). Em casa dela, naquelas águas-furtadas da rua de Fafel em que o corredor parecia a sinuosa estrada para a Régua, tinha potes com joaninhas (bolachas cobertas de chocolate e embrulhadas em pratas de cores diferentes, que pescávamos e comíamos às mãos-cheias), meias-luas da Dan Cake e os rissóis que a menina Alfredina (uma senhora para menos dez anos do que ela, mas sempre menina, que nunca se esquecia dos nossos anos e escrevia quadras nos postais de Natal) ajudava a fazer. Ambas tinham uma marca sob o peito, por encostarem o passe-vite com que trituravam os marmelos cozidos e as batatas do empadão que preparavam para os sábados.

O meu avô partiu cedo, e recordo sempre a avó a dizer que o Natal tinha de ser lá porque se calhar era o último ano, que tivéssemos paciência porque ela já não durava muito tempo... Mas durou. Tanto que, ao fim de dez, quinze anos, já ninguém acreditava nela, que seria o último ano, não, nada disso: ela tinha ficado e teria a sua missão, e ficou tanto que por vezes comentávamos que nosso senhor parecia ter-se esquecido dela, sempre a prometer, sempre a dizer que agora é que era, que tarda nada ia ter com o meu avô.

Eu, os meus irmãos e os primos do Porto divertíamo-nos com a menina Alfredina a virar de pernas para o ar tudo o que desse para virar de pernas para o ar quando aquela senhora vestida de preto, com cabelo pintado de preto e olhos pretos, vinha visitá-la para chorar pelo marido que tinha morrido. Sabíamos que quanto mais cedo virássemos as escovas das vassouras de pernas para o ar mais depressa a senhora chorona, que punha a avó a chorar, se ia embora. E então, mal nos apercebíamos da visita, tratávamos de pôr a brincadeira em prática. Depois, com modos, de fininho, a beber o leite enquanto a senhora que bebia o chá fungava, olhávamos os olhos uns dos outros e tínhamos a certeza de que tudo funcionaria, e de que o truque ficaria só entre nós. Aliás, mais cedo ou mais tarde, a senhora acabava sempre por ir embora, portanto era óbvio que resultava.

Quando íamos ao sobral ver a outra avó, trazíamos espinafres, grelos, feijão-verde e couves para o frigorífico. As sopas que a minha mãe fazia com as verduras de lá tinham um sabor diferente, bem como diferente era o sabor dos pratos com a sopa que ela fazia na fogueira da cozinha, com feijão e grão e couves aos pedaços, que ficavam cheios até à bordinha. De lá vinham também ovos das pitas. Das pitas da avó e das da tia Amélia. Hoje só a tia Amélia e a tia Maria têm. A minha mãe não tem pitas.

A avó gostava de falar com os animais. Às galinhas chamava pilapilapila quando entrava no pátio e às gatas que lhe comiam os ratos gritava bichiiiinha. Tanta meiguice contrastava com aqueles pés grandes, aquele queixo grande, as orelhas grandes com os lóbulos grandes, a pele áspera e escura do fundo das pernas, assim como eu tenho, daquelas coisas que se herdam e que não se compõem com creme.
Gostava de a ver depois do banho, tomado com sabão azul e branco, a pentear os cabelos grisalhos compridos até ao rabo. Mirava-a nas poucas alturas em que se passeava pela casa com aquele ar de menina, com a sensualidade do cabelo solto a secar sobre aquele corpo rude, áspero, do campo. Depois, os cabelos desapareciam num carrapito e voltava a ser a avó velhinha.

Ontem farias cem anos. Ouviste como te cantamos os parabéns? Ouviste?
Ouviste.

(Publicado no meu facebook 4 de novembro de 2014)