Não havia horta, apenas um quintal com cravos e catos nas traseiras que deitavam para a casa da Dona Conceição. Quando íamos visitar a avó, trazíamos o resto das fritas (como ainda hoje o meu pai chama às rabanadas, às filhós, às fatias douradas, aos sonhos e às pataniscas). Em casa dela, naquelas águas-furtadas da rua de Fafel em que o corredor parecia a sinuosa estrada para a Régua, tinha potes com joaninhas (bolachas cobertas de chocolate e embrulhadas em pratas de cores diferentes, que pescávamos e comíamos às mãos-cheias), meias-luas da Dan Cake e os rissóis que a menina Alfredina (uma senhora para menos dez anos do que ela, mas sempre menina, que nunca se esquecia dos nossos anos e escrevia quadras nos postais de Natal) ajudava a fazer. Ambas tinham uma marca sob o peito, por encostarem o passe-vite com que trituravam os marmelos cozidos e as batatas do empadão que preparavam para os sábados.
O meu avô partiu cedo, e recordo sempre a avó a dizer que o Natal tinha de ser lá porque se calhar era o último ano, que tivéssemos paciência porque ela já não durava muito tempo... Mas durou. Tanto que, ao fim de dez, quinze anos, já ninguém acreditava nela, que seria o último ano, não, nada disso: ela tinha ficado e teria a sua missão, e ficou tanto que por vezes comentávamos que nosso senhor parecia ter-se esquecido dela, sempre a prometer, sempre a dizer que agora é que era, que tarda nada ia ter com o meu avô.
Eu, os meus irmãos e os primos do Porto divertíamo-nos com a menina Alfredina a virar de pernas para o ar tudo o que desse para virar de pernas para o ar quando aquela senhora vestida de preto, com cabelo pintado de preto e olhos pretos, vinha visitá-la para chorar pelo marido que tinha morrido. Sabíamos que quanto mais cedo virássemos as escovas das vassouras de pernas para o ar mais depressa a senhora chorona, que punha a avó a chorar, se ia embora. E então, mal nos apercebíamos da visita, tratávamos de pôr a brincadeira em prática. Depois, com modos, de fininho, a beber o leite enquanto a senhora que bebia o chá fungava, olhávamos os olhos uns dos outros e tínhamos a certeza de que tudo funcionaria, e de que o truque ficaria só entre nós. Aliás, mais cedo ou mais tarde, a senhora acabava sempre por ir embora, portanto era óbvio que resultava.
Quando íamos ao sobral ver a outra avó, trazíamos espinafres, grelos, feijão-verde e couves para o frigorífico. As sopas que a minha mãe fazia com as verduras de lá tinham um sabor diferente, bem como diferente era o sabor dos pratos com a sopa que ela fazia na fogueira da cozinha, com feijão e grão e couves aos pedaços, que ficavam cheios até à bordinha. De lá vinham também ovos das pitas. Das pitas da avó e das da tia Amélia. Hoje só a tia Amélia e a tia Maria têm. A minha mãe não tem pitas.
A avó gostava de falar com os animais. Às galinhas chamava pilapilapila quando entrava no pátio e às gatas que lhe comiam os ratos gritava bichiiiinha. Tanta meiguice contrastava com aqueles pés grandes, aquele queixo grande, as orelhas grandes com os lóbulos grandes, a pele áspera e escura do fundo das pernas, assim como eu tenho, daquelas coisas que se herdam e que não se compõem com creme.
Gostava de a ver depois do banho, tomado com sabão azul e branco, a pentear os cabelos grisalhos compridos até ao rabo. Mirava-a nas poucas alturas em que se passeava pela casa com aquele ar de menina, com a sensualidade do cabelo solto a secar sobre aquele corpo rude, áspero, do campo. Depois, os cabelos desapareciam num carrapito e voltava a ser a avó velhinha.
Ontem farias cem anos. Ouviste como te cantamos os parabéns? Ouviste?
Ouviste.
(Publicado no meu facebook 4 de novembro de 2014)
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