Aqueles sempre foram degraus a mais para uma mulher que sofria tanto das pernas. Havia duas entradas. Depois da porta da rua, verde com uma maçaneta com uma mão dourada, tínhamos dois andares de degraus de madeira feitos à mão – só podiam ter sido feitos à mão, de tal maneira eram desiguais e toscos e altos – até chegar à porta de casa propriamente dita. Depois dessa porta, com o bengaleiro, havia mais uma encosta de escadas que se trepava a arfar até se alcançar o início de um corredor de curva e contracurva que dava acesso ao quintal.
Também se podia entrar pelo quintal para aquela casa. Depois daquela porta verde, com a tal maçaneta da mão dourada, naquela rua de Fafel, podia subir-se um andar só, e sair para o quintal. Havia um quintal atrás daquela casa onde a avó morava. Nele, víamos o fogo da Senhora dos Remédios quando em Setembro os tios do Porto vinham comer o pão de ló molhado e o manjar branco. No intervalo do fogo, entre as duas sessões, íamos à sala beber o chá e comer o pão-de-ló. Fazia sempre vento naqueles dias, um ventinho, uma aragem que obrigava a forrar as quatro paredes do quintal com cobertas e mantas velhas, daquelas que há séculos não serviam para nada que não fosse forrar paredes de ar. Fraquinho o fogo este ano. Cada ano mais fraquinho o fogo.
Depois de sair para o quintal tínhamos de subir mais dois lances de degraus de pedra e entrar pela cozinha. Lá, a avó a passava a sopa de cenoura com a varinha mágica na única tomada que havia naquele espaço – era preciso desligar o frigorífico para passar a sopa na tomada. Gostava muito daquela avó quando era pequenina, chamava-a madrinhinha quando no Domingo de Ramos ia ter com ela com as flores, e ela gostava tanto das flores que sempre lhe levava. Havia doces em casa daquela avó. Ao almoço, ao lanche. Quando estava no quintal a brincar com as panelinhas e as flores e a avó chamava para o lanche, eu já sabia que ia comer doces.
Naquele quintal, nas traseiras daquela casa, havia vasos com plantas, cactos a que arrancávamos as folhas grossas com cujo suco riscávamos as paredes de cimento, e fazíamos desenhos que desapareciam quando os muros secavam. Havia outras flores, cravos talvez, sei que havia outras flores porque tantas vezes era preciso agarrar naqueles regadores de metal e ir regar as flores que havia no quintal.
Não dizíamos que íamos para o quintal, e íamos para lá tantas vezes. Não. Dizíamos que íamos para o terraço. E às vezes estava tanto calor naquele terraço, que não nos deixavam ir para lá. E aquele terraço, no quintal, nas traseiras daquela casa, no terceiro andar daquele prédio daquela rua, deitava para a casa da dona Conceição, que tinha gatos. Contava a avó que tempos havia em que a dona Conceição tinha recebido uma amiga, família talvez, de Espanha, que ficava longe-muito-longe, que chegava à porta para cujas traseiras o quintal da minha avó deitava e gritava: “Concépecióne!” Dizia a minha avó que não se percebia nada do que a senhora dizia quando chamava a vizinha assim mesmo: “Concépecióne!”
Ia jurar que, pela maneira como a avó falava, Espanha era longe-tão-longe que nunca lá poderia chegar. Se eu lhe contasse, juro avó, se eu lhe contar, a avó não acreditaria. Faria aquele ar espantado de quando a pusemos a falar com o tio de Aveiro naquele telemóvel sem fios nem nada e onde tudo se ouvia como no telefone. Louvado seja deus, dizia ela, face às novas tecnologias. Deus seja louvado.
Verdade. Afinal, Espanha fica mesmo aqui ao lado.
terça-feira, 31 de março de 2015
sexta-feira, 20 de março de 2015
o dia em que tive medo de olhar para o Sol.
Escreve-se com minúscula "sol" quando nos referimos à luz e ao calor dele. O astro, a estrela, é "Sol". Minudências de revisores de texto.
A coisa deve estar a começar. Era para ser agora, portanto deve estar a ser mesmo-mesmo. O sol inunda a minha secretária, onde trabalho. Sabe bem ter o sol a aquecer-me a sala nestas manhãs ainda frias.
Não tive tempo de comprar óculos. Não sou louca para arriscar-me a estragar os olhos. Há quem tenha perdido tudo por muito menos.
Depois contem-me como foi o eclipse.
A coisa deve estar a começar. Era para ser agora, portanto deve estar a ser mesmo-mesmo. O sol inunda a minha secretária, onde trabalho. Sabe bem ter o sol a aquecer-me a sala nestas manhãs ainda frias.
Não tive tempo de comprar óculos. Não sou louca para arriscar-me a estragar os olhos. Há quem tenha perdido tudo por muito menos.
Depois contem-me como foi o eclipse.
terça-feira, 17 de março de 2015
o especialista.
Arranja-me um substituto de ti. És uma pessoa difícil, mas percebe-me. Há pouco mais que precise do que a serenidade das pessoas simples: o guru que convida para um café, o Papa que liga à miúda doente à hora do jantar, o companheiro que lê enquanto ela passeia abraçada a um amigo, o campeão olímpico que sorri e se deixa fotografar e fala como se não estivesse há duas horas a sorrir, a fotografar e a falar.
Gosto de pessoas simples. Mesmo. Mas não posso viver sem ti. Liguei e o senhor doutor não está. Fiquei em pânico de desapareceres. Como assim não está? Não desapareces nunca, está bem? Por favor, arranja uma maneira. Criaste uma cápsula que te protege e um discurso que só as tuas assistentes percebem bem. Quando se te embarga a voz defendes-te, mostras o mais complicado que há em ti. Pois, eu preciso da serenidade das pessoas simples, mas também preciso de ti. O senhor doutor não está, mas tens de estar. És demasiado importante, entendes? Não morras, por favor, sem me mostrares o caminho que sabes que direção toma. Não morras sem me mostrares a cura, sem me dizeres o que fazer. O que fazer? Meu deus, o que faço agora que não estás?
Hoje, a minha amiga explicava-me que precisava de levar a miúda ao médico porque não gostava do cheiro daquele nariz. Depois, pediu desculpa, mas não sabia explicar melhor: não gostava daquele cheiro. E eu disse-lhe: “Não te preocupes, que te percebo. Não sei se já reparaste, mas tenho dois filhos.”
Dois filhos.
De repente encheu-se-me o coração com uma alegria imensa. E senti lágrimas na barriga, percebes? Desculpa, não sei explicar melhor. Senti lágrimas na barriga. Eu tenho dois filhos.
Não morras, por favor. Preciso da serenidade das coisas simples. E da complexidade do que tens para nos dar.
Gosto de pessoas simples. Mesmo. Mas não posso viver sem ti. Liguei e o senhor doutor não está. Fiquei em pânico de desapareceres. Como assim não está? Não desapareces nunca, está bem? Por favor, arranja uma maneira. Criaste uma cápsula que te protege e um discurso que só as tuas assistentes percebem bem. Quando se te embarga a voz defendes-te, mostras o mais complicado que há em ti. Pois, eu preciso da serenidade das pessoas simples, mas também preciso de ti. O senhor doutor não está, mas tens de estar. És demasiado importante, entendes? Não morras, por favor, sem me mostrares o caminho que sabes que direção toma. Não morras sem me mostrares a cura, sem me dizeres o que fazer. O que fazer? Meu deus, o que faço agora que não estás?
Hoje, a minha amiga explicava-me que precisava de levar a miúda ao médico porque não gostava do cheiro daquele nariz. Depois, pediu desculpa, mas não sabia explicar melhor: não gostava daquele cheiro. E eu disse-lhe: “Não te preocupes, que te percebo. Não sei se já reparaste, mas tenho dois filhos.”
Dois filhos.
De repente encheu-se-me o coração com uma alegria imensa. E senti lágrimas na barriga, percebes? Desculpa, não sei explicar melhor. Senti lágrimas na barriga. Eu tenho dois filhos.
Não morras, por favor. Preciso da serenidade das coisas simples. E da complexidade do que tens para nos dar.
segunda-feira, 16 de março de 2015
sexta-feira, 13 de março de 2015
quarta-feira, 11 de março de 2015
a dança.
A Terra não gasta 365 dias dar a volta ao Sol. Deixa-me fechar a janela; não se ouve nada com os pássaros. Já volto.
São 365 dias e seis horas até à meta. É uma corrida, é uma verdadeira maratona aquilo que a Terra faz a andar à volta do Sol a rodopiar sobre si mesma. Uma dança. E demora 365 dias e seis horas com aquela dança. Este quarto de dia é acumulado ao longo de quatro anos e, ao fim destes, há o 29 de fevereiro.
Agora imaginemos que um astrónomo em Alexandria nunca se tinha lembrado disto. Melhor: imaginemos que alguém se tinha lembrado disto – “Olhem, eu acho que a cada quatro anos devíamos ter mais um dia em fevereiro” – e, pimbas!, o senhor tinha sido queimado na fogueira.
Ou imaginemos que, apesar de as investigações científicas mostrarem que 365 dias não eram o suficiente para completar uma volta, nada se fazia e se encarava o retrocesso das estações como uma inevitabilidade, e ao longo dos milénios o Natal tanto poderia ser quente como frio.
Imaginemos que, em vez de se acrescentar um dia a fevereiro, se aceitava que as estações do ano são algo que muda e que começa cada vez mais cedo. E que depois dão a volta. Assim como as alterações climáticas, mas de uma forma mais organizada, como um relógio com pouca pilha.
Ou imaginemos, imaginemos só, que os dias deixavam de ter 24 horas, e o nosso tempo de sono, e o tempo que passamos acordados num dia, e o tempo que temos para trabalhar, e em que namoramos e rimos e choramos, passavam a ser não 24 horas, mas 24 horas e uns pós. E então a Terra chegava à meta no exato fim do 365.º dia.
Haveria pássaros? Imaginemos, estamos só a imaginar: haveria trinados de piu-pius ao acordar? Haveria coaxos a saltar do rio quando passo? Haveria a brisa fresca que já dispensa o casaco? Haveria flores a despontar e a manchar o chão que piso? A sério, imaginemos: haveria primavera?
Sim, Mas quando?
São 365 dias e seis horas até à meta. É uma corrida, é uma verdadeira maratona aquilo que a Terra faz a andar à volta do Sol a rodopiar sobre si mesma. Uma dança. E demora 365 dias e seis horas com aquela dança. Este quarto de dia é acumulado ao longo de quatro anos e, ao fim destes, há o 29 de fevereiro.
Agora imaginemos que um astrónomo em Alexandria nunca se tinha lembrado disto. Melhor: imaginemos que alguém se tinha lembrado disto – “Olhem, eu acho que a cada quatro anos devíamos ter mais um dia em fevereiro” – e, pimbas!, o senhor tinha sido queimado na fogueira.
Ou imaginemos que, apesar de as investigações científicas mostrarem que 365 dias não eram o suficiente para completar uma volta, nada se fazia e se encarava o retrocesso das estações como uma inevitabilidade, e ao longo dos milénios o Natal tanto poderia ser quente como frio.
Imaginemos que, em vez de se acrescentar um dia a fevereiro, se aceitava que as estações do ano são algo que muda e que começa cada vez mais cedo. E que depois dão a volta. Assim como as alterações climáticas, mas de uma forma mais organizada, como um relógio com pouca pilha.
Ou imaginemos, imaginemos só, que os dias deixavam de ter 24 horas, e o nosso tempo de sono, e o tempo que passamos acordados num dia, e o tempo que temos para trabalhar, e em que namoramos e rimos e choramos, passavam a ser não 24 horas, mas 24 horas e uns pós. E então a Terra chegava à meta no exato fim do 365.º dia.
Haveria pássaros? Imaginemos, estamos só a imaginar: haveria trinados de piu-pius ao acordar? Haveria coaxos a saltar do rio quando passo? Haveria a brisa fresca que já dispensa o casaco? Haveria flores a despontar e a manchar o chão que piso? A sério, imaginemos: haveria primavera?
Sim, Mas quando?
segunda-feira, 9 de março de 2015
coisas que não me saem da cabeça.
My yesterdays are disappearing, and my tomorrows are uncertain, so what do I live for? I live for each day. I live in the moment. Some tomorrow soon, I’ll forget that I stood before you and gave this speech. But just because I’ll forget it some tomorrow, doesn’t mean that I did not live every second of it today. I will forget today, but that doesn’t mean that today did not matter.
I am no longer asked to lecture about language at universities and psychology conferences all over the world. But here I am before you today, giving what I hope is the most influential talk of my life. And I have Alzheimer’s disease. Thank you.
Alice Howland/Lisa Genova (Still Alice)
I am no longer asked to lecture about language at universities and psychology conferences all over the world. But here I am before you today, giving what I hope is the most influential talk of my life. And I have Alzheimer’s disease. Thank you.
Alice Howland/Lisa Genova (Still Alice)
sábado, 7 de março de 2015
sexta-feira, 6 de março de 2015
quarta-feira, 4 de março de 2015
fotografias.
O pai do avô já morreu, não foi?
Sim, o pai do avô já morreu há muito tempo.
Os pais morrem primeiro porque são mais altos, não é?
Não, tanto morrem os pais como as mães.
Não estás a perceber: morrem primeiro os mais altos e depois os mais pequenos, não é?
Não, às vezes morrem os mais pequenos primeiro.
Mas eu não quero morrer.
Não vais morrer.
Vou vou.
Está bem, vais.
E tu?
Eu também vou morrer.
Mas eu não quero que tu morras!
Não vou morrer, não te preocupes.
Vais vais.
Está bem, vou. Mas é daqui a muito tempo.
E depois eu fico sozinho!
Não, vais comigo. Alugamos um foguetão e vamos todos juntos.
Para cima das nuvens?
Sim, vai ser fixe.
E o que é essa foto?
É o meu casamento. Este é o papá, vês o papá?
Mostra. Estás de noiva, não é?
É, filho.
Deixa ver.
…
E ele está mascarado de quê?
Sim, o pai do avô já morreu há muito tempo.
Os pais morrem primeiro porque são mais altos, não é?
Não, tanto morrem os pais como as mães.
Não estás a perceber: morrem primeiro os mais altos e depois os mais pequenos, não é?
Não, às vezes morrem os mais pequenos primeiro.
Mas eu não quero morrer.
Não vais morrer.
Vou vou.
Está bem, vais.
E tu?
Eu também vou morrer.
Mas eu não quero que tu morras!
Não vou morrer, não te preocupes.
Vais vais.
Está bem, vou. Mas é daqui a muito tempo.
E depois eu fico sozinho!
Não, vais comigo. Alugamos um foguetão e vamos todos juntos.
Para cima das nuvens?
Sim, vai ser fixe.
E o que é essa foto?
É o meu casamento. Este é o papá, vês o papá?
Mostra. Estás de noiva, não é?
É, filho.
Deixa ver.
…
E ele está mascarado de quê?
domingo, 1 de março de 2015
o zumbido
Há homens que veem desfocado. Há quem veja vultos, manchado no meio, escuro dos lados, em túnel, só muito longe, só muito perto. Há quem só enxergue quando alinha os olhos em frente e o objecto a enxergar está à esquerda, ou à direita. Há muitas formas de ver quando se vê mal. E quando não se vê de todo?
Em 2011 passou na TSF uma reportagem fantástica da Ana Catarina Santos (sonoplastia de Luís Borges) sobre o mundo dos cegos congénitos, aqueles que nunca viram desde que nasceram. Com ela, cheguei mais perto dos anseios dos cegos, que lamentam não saber como são as pessoas sem ter de lhes tocar, não ver como são os seus rostos. Um homem descobre pelas mãos da jornalista que tem olhos azuis, porque nunca se questionou em relação a isso, os olhos nunca interessaram. Para uns, o Sol é azul, o Sporting é amarelo, o céu é vermelho ou não tem cor. Aliás, ao longo da peça percebe-se quão difícil é para um cego de nascença perceber as cores, ver um Picasso. E quão irrelevante isso se torna afinal.
O jornalista Damon Rose enquadra-se no grupo dos chamados cegos “totais”, mas não é cego de nascença. Cegou em criança, há 31 anos, depois de uma cirurgia mal-sucedida que lhe “cortou a ligação dos olhos ao cérebro”. O relatório que o atesta tem três letras: NLP (no light percepcion, ou seja, sem perceção de luz). Na página das notícias da BBC escreve um artigo na primeira pessoa (www.bbc.com/news/blogs-ouch-31487662). E diz que aquilo de que sente mais falta por não poder ver é a escuridão.
Leio o artigo para perceber. Fecho os olhos para ver a escuridão. Abro-os e continuo a ler.
“Assume-se que, quando a visão é desligada, uma pessoa é deixada na escuridão. Mas parece que não. O meu mundo não ficou preto. Cessem todas as metáforas, comparações, analogias e floreados literários sobre a cegueira: estou a dizer-vos que o que vejo está bem longe do escuro. Aliás, é o oposto.
Mas o que substitui a visão 3D a cores quando esta desaparece? A resposta – pelo menos no meu caso – é luz. Muita luz. Uma luz brilhante, colorida, sempre a mudar, terrivelmente perturbadora. Vou tentar descrevê-la.
Tenho um fundo castanho-escuro, com uma luminescência turquesa ao centro. Por acaso, acabou de se transformar em verde… agora é azul-claro com manchas amarelas, e há algum cor de laranja a ameaçar vir para a frente de tudo isto. O resto do meu campo visual está tomado por formas geométricas, riscos e nuvens que não consigo descrever – nem teria tempo para o fazer antes de mudarem novamente. Numa hora, estará tudo diferente.
Se eu tentar acabar com esta distração fechando os olhos, não funciona. Estas imagens nunca vão embora. Tenho saudades desses momentos de paz no escuro: andar à noite sob os candeeiros da rua, as sombras numa sala com uma lareira a crepitar ou viajar no banco de trás do carro do meu pai a vislumbrar os olhos de um gato a aparecerem no meio da estrada.
Tive de substituir a escuridão por silêncio, e como a minha lareira interior nunca se apaga, descrevo o que tenho como uma espécie de zumbido.
Quando fiquei cego, pensei que as luzes coloridas eram um sinal de que os meus olhos estavam a tentar funcionar outra vez. Fiquei com esperança, e andava fascinado com isso. Costumava sentar-me e ficar a olhar. Agora sei que isto é o meu cérebro a ultrapassar o facto de já não receber imagens.
Algumas pessoas acreditam que o que eu vejo é a vida depois da morte, e quando mo dizem não sei o que lhes responder. Mas o que nunca consegui descobrir é se os outros que, tal como eu, não têm perceção de luz também vêem o que eu vejo.
E, partindo do princípio de que a visão real e conduzir um carro não são opções, será que eles também anseiam por um pouco de escuridão?”
Li o artigo sem grande esforço. Aliás, como leio com os olhos, e não com os ouvidos ou com as pontas dos dedos, vejo sempre bem as letras, com ou sem os óculos postos. É um dos motivos por que não dou muitos erros, e uma das razões porque faço bem o meu trabalho. Estou perfeitamente no sofá a ver televisão, o que me permite seguir argumentos de filmes em línguas que não domino. Também acontece no cinema, mesmo quando me calham as filas de trás. Quando alguém me cumprimenta do outro lado da rua, vejo quem é e retribuo. Quando me fazem olhinhos no metro, fico com o flirt guardado no cérebro e vou buscá-lo quando a autoestima se vem abaixo. Num jantar de amigos, vejo o arquear da sobrancelha quando acabei de meter a pata na poça e mudo de assunto.
Há muitas coisas por que tenho de dar graças diariamente. Tentarei não me esquecer da escuridão que está ao alcance de fechar os olhos.
Em 2011 passou na TSF uma reportagem fantástica da Ana Catarina Santos (sonoplastia de Luís Borges) sobre o mundo dos cegos congénitos, aqueles que nunca viram desde que nasceram. Com ela, cheguei mais perto dos anseios dos cegos, que lamentam não saber como são as pessoas sem ter de lhes tocar, não ver como são os seus rostos. Um homem descobre pelas mãos da jornalista que tem olhos azuis, porque nunca se questionou em relação a isso, os olhos nunca interessaram. Para uns, o Sol é azul, o Sporting é amarelo, o céu é vermelho ou não tem cor. Aliás, ao longo da peça percebe-se quão difícil é para um cego de nascença perceber as cores, ver um Picasso. E quão irrelevante isso se torna afinal.
O jornalista Damon Rose enquadra-se no grupo dos chamados cegos “totais”, mas não é cego de nascença. Cegou em criança, há 31 anos, depois de uma cirurgia mal-sucedida que lhe “cortou a ligação dos olhos ao cérebro”. O relatório que o atesta tem três letras: NLP (no light percepcion, ou seja, sem perceção de luz). Na página das notícias da BBC escreve um artigo na primeira pessoa (www.bbc.com/news/blogs-ouch-31487662). E diz que aquilo de que sente mais falta por não poder ver é a escuridão.
Leio o artigo para perceber. Fecho os olhos para ver a escuridão. Abro-os e continuo a ler.
“Assume-se que, quando a visão é desligada, uma pessoa é deixada na escuridão. Mas parece que não. O meu mundo não ficou preto. Cessem todas as metáforas, comparações, analogias e floreados literários sobre a cegueira: estou a dizer-vos que o que vejo está bem longe do escuro. Aliás, é o oposto.
Mas o que substitui a visão 3D a cores quando esta desaparece? A resposta – pelo menos no meu caso – é luz. Muita luz. Uma luz brilhante, colorida, sempre a mudar, terrivelmente perturbadora. Vou tentar descrevê-la.
Tenho um fundo castanho-escuro, com uma luminescência turquesa ao centro. Por acaso, acabou de se transformar em verde… agora é azul-claro com manchas amarelas, e há algum cor de laranja a ameaçar vir para a frente de tudo isto. O resto do meu campo visual está tomado por formas geométricas, riscos e nuvens que não consigo descrever – nem teria tempo para o fazer antes de mudarem novamente. Numa hora, estará tudo diferente.
Se eu tentar acabar com esta distração fechando os olhos, não funciona. Estas imagens nunca vão embora. Tenho saudades desses momentos de paz no escuro: andar à noite sob os candeeiros da rua, as sombras numa sala com uma lareira a crepitar ou viajar no banco de trás do carro do meu pai a vislumbrar os olhos de um gato a aparecerem no meio da estrada.
Tive de substituir a escuridão por silêncio, e como a minha lareira interior nunca se apaga, descrevo o que tenho como uma espécie de zumbido.
Quando fiquei cego, pensei que as luzes coloridas eram um sinal de que os meus olhos estavam a tentar funcionar outra vez. Fiquei com esperança, e andava fascinado com isso. Costumava sentar-me e ficar a olhar. Agora sei que isto é o meu cérebro a ultrapassar o facto de já não receber imagens.
Algumas pessoas acreditam que o que eu vejo é a vida depois da morte, e quando mo dizem não sei o que lhes responder. Mas o que nunca consegui descobrir é se os outros que, tal como eu, não têm perceção de luz também vêem o que eu vejo.
E, partindo do princípio de que a visão real e conduzir um carro não são opções, será que eles também anseiam por um pouco de escuridão?”
Li o artigo sem grande esforço. Aliás, como leio com os olhos, e não com os ouvidos ou com as pontas dos dedos, vejo sempre bem as letras, com ou sem os óculos postos. É um dos motivos por que não dou muitos erros, e uma das razões porque faço bem o meu trabalho. Estou perfeitamente no sofá a ver televisão, o que me permite seguir argumentos de filmes em línguas que não domino. Também acontece no cinema, mesmo quando me calham as filas de trás. Quando alguém me cumprimenta do outro lado da rua, vejo quem é e retribuo. Quando me fazem olhinhos no metro, fico com o flirt guardado no cérebro e vou buscá-lo quando a autoestima se vem abaixo. Num jantar de amigos, vejo o arquear da sobrancelha quando acabei de meter a pata na poça e mudo de assunto.
Há muitas coisas por que tenho de dar graças diariamente. Tentarei não me esquecer da escuridão que está ao alcance de fechar os olhos.
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