Em 2011 passou na TSF uma reportagem fantástica da Ana Catarina Santos (sonoplastia de Luís Borges) sobre o mundo dos cegos congénitos, aqueles que nunca viram desde que nasceram. Com ela, cheguei mais perto dos anseios dos cegos, que lamentam não saber como são as pessoas sem ter de lhes tocar, não ver como são os seus rostos. Um homem descobre pelas mãos da jornalista que tem olhos azuis, porque nunca se questionou em relação a isso, os olhos nunca interessaram. Para uns, o Sol é azul, o Sporting é amarelo, o céu é vermelho ou não tem cor. Aliás, ao longo da peça percebe-se quão difícil é para um cego de nascença perceber as cores, ver um Picasso. E quão irrelevante isso se torna afinal.
O jornalista Damon Rose enquadra-se no grupo dos chamados cegos “totais”, mas não é cego de nascença. Cegou em criança, há 31 anos, depois de uma cirurgia mal-sucedida que lhe “cortou a ligação dos olhos ao cérebro”. O relatório que o atesta tem três letras: NLP (no light percepcion, ou seja, sem perceção de luz). Na página das notícias da BBC escreve um artigo na primeira pessoa (www.bbc.com/news/blogs-ouch-31487662). E diz que aquilo de que sente mais falta por não poder ver é a escuridão.
Leio o artigo para perceber. Fecho os olhos para ver a escuridão. Abro-os e continuo a ler.
“Assume-se que, quando a visão é desligada, uma pessoa é deixada na escuridão. Mas parece que não. O meu mundo não ficou preto. Cessem todas as metáforas, comparações, analogias e floreados literários sobre a cegueira: estou a dizer-vos que o que vejo está bem longe do escuro. Aliás, é o oposto.
Mas o que substitui a visão 3D a cores quando esta desaparece? A resposta – pelo menos no meu caso – é luz. Muita luz. Uma luz brilhante, colorida, sempre a mudar, terrivelmente perturbadora. Vou tentar descrevê-la.
Tenho um fundo castanho-escuro, com uma luminescência turquesa ao centro. Por acaso, acabou de se transformar em verde… agora é azul-claro com manchas amarelas, e há algum cor de laranja a ameaçar vir para a frente de tudo isto. O resto do meu campo visual está tomado por formas geométricas, riscos e nuvens que não consigo descrever – nem teria tempo para o fazer antes de mudarem novamente. Numa hora, estará tudo diferente.
Se eu tentar acabar com esta distração fechando os olhos, não funciona. Estas imagens nunca vão embora. Tenho saudades desses momentos de paz no escuro: andar à noite sob os candeeiros da rua, as sombras numa sala com uma lareira a crepitar ou viajar no banco de trás do carro do meu pai a vislumbrar os olhos de um gato a aparecerem no meio da estrada.
Tive de substituir a escuridão por silêncio, e como a minha lareira interior nunca se apaga, descrevo o que tenho como uma espécie de zumbido.
Quando fiquei cego, pensei que as luzes coloridas eram um sinal de que os meus olhos estavam a tentar funcionar outra vez. Fiquei com esperança, e andava fascinado com isso. Costumava sentar-me e ficar a olhar. Agora sei que isto é o meu cérebro a ultrapassar o facto de já não receber imagens.
Algumas pessoas acreditam que o que eu vejo é a vida depois da morte, e quando mo dizem não sei o que lhes responder. Mas o que nunca consegui descobrir é se os outros que, tal como eu, não têm perceção de luz também vêem o que eu vejo.
E, partindo do princípio de que a visão real e conduzir um carro não são opções, será que eles também anseiam por um pouco de escuridão?”
Li o artigo sem grande esforço. Aliás, como leio com os olhos, e não com os ouvidos ou com as pontas dos dedos, vejo sempre bem as letras, com ou sem os óculos postos. É um dos motivos por que não dou muitos erros, e uma das razões porque faço bem o meu trabalho. Estou perfeitamente no sofá a ver televisão, o que me permite seguir argumentos de filmes em línguas que não domino. Também acontece no cinema, mesmo quando me calham as filas de trás. Quando alguém me cumprimenta do outro lado da rua, vejo quem é e retribuo. Quando me fazem olhinhos no metro, fico com o flirt guardado no cérebro e vou buscá-lo quando a autoestima se vem abaixo. Num jantar de amigos, vejo o arquear da sobrancelha quando acabei de meter a pata na poça e mudo de assunto.
Há muitas coisas por que tenho de dar graças diariamente. Tentarei não me esquecer da escuridão que está ao alcance de fechar os olhos.
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