quarta-feira, 29 de abril de 2015

o relógio.

Bengala branca na mão, vais depressa demais. Eu sei que vou mais depressa. É demais. Se eu tropeçar nem tenho tempo de olhar. Tu, olhando para dentro, também podes tropeçar.

Tão relativo é o tempo entre mim e a bengala branca. Tão diferente.

Vê por exemplo, o senhor. Ali no passeio, amparado, o senhor. Devagarinho, onde vais? E eu aqui, stop, acidente à frente, passo de caracol. Eu aqui stop. Iria mais depressa de cócoras do que neste carro a gasolina. Iria mais depressa do que o senhor se fosse de cócoras. E o senhor, devagarinho, afinal anda mais rápido do que um carro.

Não acreditas? Tão relativo é o tempo entre mim e o senhor engessado. Tão diferente.

As noites passam a correr. São sete horas de noite e, oh, passou a correr. E os dez minutos, quinze minutos, meia hora, há 45 minutos à tua espera, QUARENTA E CINCO MINUTOS! E não vieste. Não respondeste. Estás distante.

Tão relativo é o tempo quando estás distante.

Subo as escadas dois a dois. Subo rápido. Dois a dois é rápido para quem vê. E ainda falta. Ainda falta. Só mais um. Bolas, Só mais um. Bolas. É só mais um.

Tenho uma hora de almoço. Apanho o metro, saio para comer, tenho meia dúzia de coisas para comprar e umas capas para pôr nas botas; o homem é bom. Quanto tempo dura uma hora se tiver um prato de sopa, uma sala vazia, sem jornal, sem um livro, SEM TELEMÓVEL (é muito importante não ter telemóvel para medir o tempo)... Quanto tempo dura uma hora? e então comer uma sopa demora mais do que sair, almoçar, passar no sapateiro e fazer umas compras. Verdade?

Demora mais tempo.

Vens buscar-me cedo? Sim, para mim é cedo. Olha para mim é tarde. Vim o mais rápido que pude. Demoraste. Deixei um trabalho a meio. Fiquei sozinho na sala. A correr. Parado. Vamos depressa, São quase oito da noite, pá.

Da tarde.
Se vires bem o céu, são quase oito da tarde.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

a pedra.

Havia uma oliveira no fundo do vale que não era dali. Estava na beira da estrada, na beirinha, não incomodava ninguém. Ou incomodava? Levaram-na para o fundo do vale. Ninguém perguntou à oliveira se podia ser. Mas claro que podia.

Claro que pode. Passe-passe.

Foi assim. Queres saber, não queres? A estrada precisou de ser alargada, desculpa mas precisamos de espaço. E então levaram a oliveira, raízes e tudo, e puseram-na ali. Agora os carros já podem passar.

Passe-passe.

Agora já cabes. A oliveira do fundo do vale, que não era dali, estava naquele lugar, na faixa da esquerda, e os homens da carrinha vieram e escavaram. Foram máquinas que os homens trouxeram que escavaram à volta das raízes da oliveira que está no fundo do vale, e que a levaram para ali.

No lugar da oliveira, puseram uma pedra. Assim como três pontinhos, uns agrafos, uma cicatriz, vamos lá tapar o buraco. Puseram uma pedra sobre o buraco à beira da estrada. Um marco sobre a terra revolta onde a oliveira vivia antes de se ter mudado. Havia uma estrada estreita demais e uma oliveira a mais na estrada estreita. E agora há uma pedra desse lado da estrada. E a oliveira, estreitando-se para caber na máquina que a trasladava, já se tinha estreitado para ver se os carros passavam sem terem de a tirar dali. Sabias?

Vejam lá, experimentem só. Vejam lá se dá para eu ficar.

Depois calou-se. Deixem estar. Foi levada, raízes e tudo ao pendurão, foi levada para o meio do vale. Havia homens, mulheres, tantas pessoas a gabar o tamanho das raízes da oliveira a ser levada para o meio do vale. Nem imaginas! Ó vê-me isto. Forte, esta oliveira, tão forte. Havia homens, mulheres, tantas pessoas a dizer que ali no vale é que a oliveira da berma da estrada ficava bem. Tão bem que ficava.

Passe-passe.

Tão pouco tempo para criar raízes, e a oliveira já pertencia ali. A sério; estou-te a contar. Todos diziam, homens, mulheres, tantas pessoas, todos diziam que a oliveira das raízes grandes ao pendurão que estava na berma da estrada, naquele ponto marcado pela pedra, naquele marco, agora, sempre pertencera ali. E a oliveira, do fundo do vale, com raízes enterradas a ganhar terreno e as folhas a procurar sol, conseguia ver a estrada em cuja berma pertencia.

Vê-se daqui. Era ali. Naquele marco. Era longe ainda, mas foi assim. E queres saber? Cada dia que passava ficava mais longe. Ou parecia.

A cicatriz vê-se daqui.

sexta-feira, 17 de abril de 2015

ledo burma road.

E, então, ele disse: 

«Era uma imagem fantástica, mas que não seria a forma mais inteligente de fazer aquele percurso. A vida é mesmo assim. Depois, descobri nesta segunda imagem o atalho dos "espertos"... um caminho estreito e íngreme até ao topo. De alguma maneira, temos duas visões da mesma viagem: a ocidental (a linha estreita, íngreme e dolorosa) e a oriental (sinuosa, longa, mas suave na subida).

Mais importante do que os locais ou os objectivos a atingir, são os percursos/modos/viagens que fazemos para lá chegarmos. E convém não esquecer que a estrada funciona dos dois sentidos.»


quarta-feira, 15 de abril de 2015

check-up.

Tiro a camisola e descalço-me, a ver se o coração está bem. Ploc. Ploc. Ploc. Bu-bum. Pode vestir.

Olho as formas dos calcanhares das meias quando as visto. Novas a estrear, e nunca mais serão as mesmas.

Posso continuar a usá-las, claro. Lavá-las e usá-las outra vez. Lavá-las e usá-las outra vez. Casá-las, enrolá-las, ver que têm um buraco, dar-lhes um nó até coser o buraco – bem, já ninguém cose buracos.

Por vezes, as meias novas duram uma só vez, e logo deixam de se poder usar. Passam de novas a velhas num dia só. Aquela unha, aquele sapato, este material que não presta. Lixo.

Nem sempre é fácil perceber a qualidade das meias a olhar para a embalagem. Umas meias caras podem não valer nada afinal. Além disso, o encanto das novas esvai-se na primeira lavagem. Já não se sente o mesmo, um borboto, uma das duas a fugir para outra máquina qualquer. Bolas. Um branco-rosa. Bolas. Um branco-sujo. Nem a lixívia resolve. Nem com lixívia.

Casamos as meias uma e outra vez até ao dia em que ficam desirmanadas. É a altura de as deixar ir. De as mandar embora. Mesmo quando as calçamos, por serem só uma sem par, não servem para nada. Acabou.

Bom colesterol elevado, açúcar baixinho, funções do fígado impec, raio-x tudo bem. Bu-bum. «Sabe que mais? Tem o coração pingado.»

Eu sei.

broken crayons still colour.


terça-feira, 14 de abril de 2015

jorge luis borges

Después de un tiempo, uno aprende la sutil diferencia entre sostener una mano y encadenar
un alma, y uno aprende que el amor no significa acostarse y una compañía no significa
seguridad, y uno empieza a aprender...
Que los besos no son contratos y los regalos no son promesas, y uno empieza a aceptar sus
derrotas con la cabeza alta y los ojos abiertos, y uno aprende a construir todos sus caminos en
el hoy, porque el terreno de mañana es demasiado inseguro para planes... y los futuros tienen
una forma de caerse en la mitad.
Y después de un tiempo uno aprende que si es demasiado, hasta el calor del sol quema. Así
que uno planta su propio jardín y decora su propia alma, en lugar de esperar a que alguien le
traiga flores.
Y uno aprende que realmente puede aguantar, que uno realmente es fuerte, que uno
realmente vale, y uno aprende y aprende... y con cada día uno aprende.
Con el tiempo aprendes que estar con alguien porque te ofrece un buen futuro significa que
tarde o temprano querrás volver a tu pasado.
Con el tiempo comprendes que sólo quien es capaz de amarte con tus defectos, sin pretender
cambiarte, puede brindarte toda la felicidad que deseas.
Con el tiempo te das cuenta de que si estás al lado de esa persona sólo por acompañar tu
soledad, irremediablemente acabarás no deseando volver a verla.
Con el tiempo entiendes que los verdaderos amigos son contados, y que el que no lucha por
ellos tarde o temprano se verá rodeado sólo de amistades falsas.
Con el tiempo aprendes que las palabras dichas en un momento de ira pueden seguir
lastimando a quien heriste, durante toda la vida.
Con el tiempo aprendes que disculpar cualquiera lo hace, pero perdonar es sólo de almas
grandes.
Con el tiempo comprendes que si has herido a un amigo duramente, muy probablemente la
amistad jamás volverá a ser igual.
Con el tiempo te das cuenta que aunque seas feliz con tus amigos, algún día llorarás por
aquellos que dejaste ir.
Con el tiempo te das cuenta de que cada experiencia vivida con cada persona es irrepetible.
Con el tiempo te das cuenta de que el que humilla o desprecia a un ser humano, tarde o
temprano sufrirá las mismas humillaciones o desprecios multiplicados al cuadrado.
Con el tiempo aprendes a construir todos tus caminos en el hoy, porque el terreno del
mañana es demasiado incierto para hacer planes.
Con el tiempo comprendes que apresurar las cosas o forzarlas a que pasen ocasionará que al
final no sean como esperabas.
Con el tiempo te das cuenta de que en realidad lo mejor no era el futuro, sino el momento
que estabas viviendo justo en ese instante.
Con el tiempo verás que aunque seas feliz con los que están a tu lado, añorarás terriblemente
a los que ayer estaban contigo y ahora se han marchado.
Con el tiempo aprenderás que intentar perdonar o pedir perdón, decir que amas, decir que
extrañas, decir que necesitas, decir que quieres ser amigo, ante una tumba, ya no tiene
ningún sentido.
Pero desafortunadamente, solo con el tiempo...

sábado, 11 de abril de 2015

a relva.

Estou a sonhar contigo quando vais embora. Fica. Vá. Ficamos aqui a passear.

Gosto da biblioteca. Gosto tanto. Há um silêncio, um respeito. Parece que entrámos numa igreja, de mão dada, chiu. Para casar, porque não?

Cá fora a oliveira. Lembras-te de quando viemos aqui juntos? Árvore notável, 1500 anos. Olive tree. E fotografámos. Tirámos tantas fotografias. Eu tiro fotos a mais. Mas depois gostas, não é? São a mais, sempre a mais, sempre a mais. Boas, as fotos.

Há uma hera presa a um muro. E fotografo. Hortênsias a conviver com heras. E fotografo. Árvores vergadas. Foto. Raízes expostas. Foto. No restaurante olham para nós porque trazemos relva nas calças. Sorrimos. Pudim de pão. Natas do céu. Para mim é só uma salada. Riso, sim. Tens a certeza de que é só uma salada?

Faz duas horas que aqui andámos e parece que é a primeira vez. Os passeios para esmoer os doces. Foi só hoje.

Na primavera há uma bebedeira de aromas. Aqui, o cheiro a terra entranha-se-nos nos olhos e vê-se por todo o lado onde pinga, onde ganha cor com o fim destes dias de chuva. Neste jardim onde andamos tu e eu, paramos. Foto. A ti e a mim. Aos dois. Agora aí. Aqui.

Eu a sonhar contigo e vais embora. Bah. Então agora é que vais embora?

Não era um sonho. Estou mesmo aqui.
(Olive tree, Serralves, 2015)

terça-feira, 7 de abril de 2015

da nossa humanidade.

A vergonha de falar em fezes pode matar. A peça do Público de ontem diz que há onze portugueses a morrerem de cancro colorretal todos os dias, porque há quem morra de vergonha de falar nisso.

Credo. Falar em cocó com o médico.
Credo. Olhar para o cocó.
Credo. Levar o cocó para análise.
Credo. Sugerir ao médico que mande fazer um exame porque dói a fazer o cocó.

Ca nojo.

Há vírus que passam entre amantes porque há quem morra de vergonha de falar nisso. Hepatite. Sida. Ah nem pensar. Herpes genital? Ca nojo. Verrugas no sexo? Ca nojo. Ah eu cá não. Ah eu cá não.

Ca nojo.

Morro de vergonha de ser impotente. Morro de vergonha de ser incontinente. Sou incontinente. Sabes?

Ca nojo.

O relatório fala em quisto e pede vigilância. Uma mancha. Uma luz. É melhor não falar nisso, morro de medo. Entro no metro e ela tosse. Eu se fosse a ti ia ver isso. Entro na caverna e ela tosse. O quisto. Vou de viagem numa caverna com tosse. Tosse, cospe, engole. Isso do quisto.

Ca nojo.

Uma tosse e tosse e tosse. Uma tosse e tosse e tosse. Uma mulher roxa a tossir os pulmões. Uma tosse e tosse e tosse. Eu se fosse a ti ia ver essa tosse. Uma mulher a cuspir os pulmões. Os pulmões da mulher liquefeitos. Sai.

Credo. Os pulmões da mulher no passeio.

Ca nojo.

segunda-feira, 6 de abril de 2015

tira-teimas

Sorriso audível das folhas
Não és mais que a brisa ali
Se eu te olho e tu me olhas,
Quem primeiro é que sorri?
O primeiro a sorrir ri.

Ri e olha de repente
Para fins de não olhar
Para onde nas folhas sente
O som do vento a passar
Tudo é vento e disfarçar.

Mas o olhar, de estar olhando
Onde não olha, voltou
E estamos os dois falando
O que se não conversou
Isto acaba ou começou?

Fernando Pessoa