quinta-feira, 25 de junho de 2015

excel.

Se a nossa sociedade fosse uma folha de excel, haveria várias linhas cruzadas com colunas, com quem fala e quem não sabe falar, quem salta e quem não sabe encestar, quem se expressa e quem não se sabe expressar, quem ri e quem não percebe as piadas.

Não obstante um sentido que falta, uma aptidão mais ou menos desenvolvida, e a dificuldade que uma determinada acção sempre implicará, há quem seja bom e quem seja mau a fazer algo, independentemente do que falhe, dos gostos, das quedas para, dos feitios. Levar a cabo alguma coisa exige bem mais do que ser fisicamente apto.

Deficientes ou não, todos fazemos sexo, ou não, todos temos conversas inteligentes, ou não, todos realizamos tarefas complicadas, ou não, todos criamos bebés, ou não, todos sabemos educar, ou não, todos limpamos, arrumamos, organizamos, ou não, todos cheiramos bem, ou não.

Todos não conseguimos fazer algo, e isso não tem nada a ver com a deficiência que possamos ter. Tem a ver com tudo o resto.

Há limitações óbvias que podem impedir muitos sonhos, mas poucas são as que os podem impedir a todos. Cada um de nós conhecerá casos, bem menos difíceis de atestar medicamente, em que a inteligência, os princípios e o carácter são deficiências bem mais graves e impeditivas do que as dos sentidos.

Ah. Tanta coisa para partilhar esta foto. Este é o Nuno Amade. O David Maia treinou-o, o Nuno cumpriu um sonho e o Fernando Santos, que foi os seus olhos durante a corrida na marginal, disse no final da prova que era um homem feliz.

Às vezes ajudar custa tão pouco. Ninguém paga a ninguém por isso, mas ganha-se sempre.
(Foto: Emídio Copeto Gomes)

sexta-feira, 19 de junho de 2015

chegar a cada instante pela primeira vez.

tudo é único. nada acontece mais do que uma vez na vida. o prazer físico que uma mulher te deu, em certo momento, o prato magnífico que comeste em determinado dia, nunca mais irás encontrá-los novamente. nada é repetido, e tudo é sem rival.

... e este luar por entre as árvores, e até este momento, e eu próprio."

(in Yoga para Pessoas Que não Estão para Fazer Yoga)

terça-feira, 16 de junho de 2015

ET.

Na minha terra, há mulheres que andam quilómetros de autocarro para terem direito a uma promoção de cêntimos e que depois apanham um táxi para casa. Há homens que chamam nomes aos filhos para que aprendam a ser bem-educados em público. Há asmáticos a fumar, obesos a lamber gelados, xico-espertos ao volante de grandes bombas a comer caca do nariz. Ainda hoje, era um Tesla e o tipo de fato, e eu a pensar naquilo…

Na minha terra, gastam-se milhares de euros em inaugurações da treta e cortam-se subsídios. Faltam remédios na farmácia, papel higiénico nos hospitais e folhas nas impressoras das escolas, porque o Estado, o próprio Estado, é o último a pagar… em quase tudo. Há reformados a gastar mais em medicamentos do que aquilo que recebem de pensão. Mulheres a endividarem-se com vestidos que usam uma vez na vida. Casamentos que demoram mais a organizar do que o tempo que o casal aguenta junto.

Na minha terra, há quem pare deliberadamente as escadas do metro para obrigar quem não pode subi-las a fazê-lo, a pé. Há mulheres a morrer de tristeza por não poderem ter filhos e milhões de crianças sem pais. Há velhotes a arrancar flores que demoram um ano inteiro a florescer e miúdos a direccionar os repuxos da rega para que, de manhã, quando vou correr, eu tome um banho assim, de surpresa, tipo relva a precisar de crescer.

Ora, eu já sou grande. Além de que costumo tomar banho depois. Quando me vens buscar?


quinta-feira, 4 de junho de 2015

a poça.

Há troncos revestidos por heras na estrada. Caminho sombrio, fresco, tão bom no calor do dia que aparece assim, desenquadrado, no meio da primavera. A mota deita-se ora para a esquerda, ora para a direita, e a estrada é minha só.

Podia ser bom mas não é. Dói tanto. 

Saí sem dizer onde ia. Bati a porta. Estou tão magoado contigo que agarrei no capacete e vim. Com a inclinação da mota que rola, sinto embalar o batimento do coração que se esfria, tal como a ponta do nariz se esfria neste embalo para um lado e para o outro, em que me acalmo.

Porque me magoas tanto? Porque te proteges magoando-me tanto?

O caminho até ao mar acompanha o estridente eléctrico de ferro que pára na Praia das Maçãs. Ainda não sei se vou para lá ou não. Vou sem rumo. Faz-me bem ir assim sem rumo. Fiz uma viagem parecida depois do fim de semana que passámos juntos. Foi o primeiro. Disseste que me amavas, eu estava de férias. E quando seguia até à praia imaginava se sorririas com os lábios secos e se pensarias em mim da mesma maneira quando paravas para encher a garrafa junto à maquina do café. E quando olhava o mar pensava em ti a trabalhar. E pensava em mim, com tanta sorte. E queria que aquela brisa durasse para

o quê. não te conheço. dói. não mexo o braço. ajuda-me a pôr o braço direito. onde estou. o que é que aconteceu. não sei, não sei o nome, deixa-me. saibo a sangue e a erva. o que é isto. sintra. acho que é sintra. sim, vivo em sintra. quem és tu. não me posso mexer porquê. quem é esta gente toda. o que aconteceu. de onde vem este sangue. não, não tenho ninguém à minha espera. quero-me levantar. deixem-me levantar. o que aconteceu. quero-me levantar.


(Ribeira de Colares, 30 de maio de 2015)

terça-feira, 2 de junho de 2015

carta aos amigos pequenos.

Apareceram-me de repente. Já vos achava perdidos. Sobrepostos, às camadas, uns com os pés para cima, outros com os pés para baixo, com os corpos rasgados, nus, colados com fita-cola.

Avolumavam-se nomes e pessoas e desenhos quando abri a caixa. E nem sempre cheguei lá: quem és? Como é que vocês cabem aí dentro… Onde estiveram estes anos todos? Será possível que vos reconheça pela caligrafia? Pelo envelope? Oh meu Deus, é mesmo.

A Diana. A Andrea. A Ana. A Mónica. O Nuno. Eu sei. Parece mentira, foi há tanto tempo! O Luís salta da caixa e manda-me provar a palavra “mar”. Depois ri-se: “Seria interessante tocar com a língua na palavra e sentir o sabor do sal, não achas?”

Acho, claro.

O Bruno começa a falar, a falar, a falar. Não percebo nada do que escreves, pá. Ao lado, o Américo: “Então já ninguém me conhece?” A Rute manda beijos de Coimbra, beijos, que me ama, a Rute diz que me ama. A Lenka dá-me tabaco checo para experimentar, a Laura textos para ler, a Liliana fala da vida, que é mesmo assim, difícil, complicada, e pede-me juízo. Todos têm saudades. Muuuuitas saudades. Nem dei conta. E corações e beijos e assinaturas estranhas a trancar as cartas. Piadas que não percebia. Bocas que não percebia. Letras que não percebia.

Também tenho. Desenhava uma mota ridícula no final da assinatura, e havia quem me perguntasse o que era aquela coisa ali. Olha, estou mesmo aqui. Fico pequena aqui entre vós todos. Pequena e ridícula, como todas as cartas afinal.

Por trás do Bruno está o Pedro. Aparece muito. Sempre a saltar dos envelopes que se desfazem, vem com a máquina de escrever. E faz colagens e desenhos e enumera perguntas a que tenho de responder. Escreve com cores diferentes: “número 1 – namoras?” “Ich li bi dich”, acrescenta no final, sublinhando que “está em alemão”. Será que algum dia respondi a isto?

Mais abaixo, os meus irmãos. Nem sabia que me tinham escrito tanto: especialmente quando deixei de acreditar em Deus. Orgulho, força, coragem. Muitos incentivos à vida para mim, mais pequena e burra, e inocente, e sem saber nada de nada. Eu não dei conta, mas percebo agora. Ouvem isto? Venham cá: percebo agora. O Bruno continua a falar, e fala e fala. Continuo sem te perceber, Bruno. Ainda não sei porque me diriges as palavras que escreves. Mas agora compreendo cada linha. É bonito. Só não sei porque mo escrevias a mim. Um dia dou-to para publicares. Espero que ainda vá a tempo.

Nunca dei conta de nada, até agora, que estou entre vós. Só agora percebo que não percebia nada do que me escreviam. E que me queixava de que estava a crescer sozinha no meio de abraços e beijos e corações e palavras que nem ousava observar. Só agora percebo que não percebia.

Trouxe um caixote cheio de seres pequenos para esta casa. Pessoas deitadas entre palavras e envelopes que revistei para ver se era de me desfazer delas ou não. Mantive todas.

Deixai-vos estar aí, amigos. Ao pé de mim. Sossegaditos.

Obrigada.