quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015
terça-feira, 24 de fevereiro de 2015
carcavelos.
Va… ca. Vaca. O miúdo chama a vaca a olhar lá para fora como se houvesse vacas lá fora. Não ouço nada. Olho e não vejo vaca nenhuma. Os lábios do puto a embaciar o vidro desenham váaaa-ca no ar, e eu consigo ler, mas não oiço. Não oiço nem vejo. Quer dizer: não oiço e não se vêem vacas aqui do bar. Assim é que é.
Lá fora, há um scooby-doo a dançar ao frio e a disparar areia, a correr para o pau, a voltar para o impermeável preto a trazer o pau, a correr para o pau, a voltar para trazer o pau.
Tem ar de ser divertido atirar o pau à vaca assim à beira-mar. O inverno traz destas coisas boas: ter a praia para nós e uns gatos-pingados de ondas bonitas, altas e borrifadoras. Gosto. Mas não sei ouvir o som do mar. Gostava, mas não. São tantos os que já apanhei sentados a olhar para o ondular da espuma que soará certamente a alguma coisa boa. Nunca ouvi nada. Quer dizer: ouço à minha maneira com estes ouvidos que não funcionam.
Quando lia Sophia, ou Nemésio, ou Pessoa, ou mesmo o Antero a rimar “as vozes do mar, das árvores, do vento!”, pensava sempre oh caraças: a voz do vento vá-que-não-vai, que é fria e despenteia; agora a voz do mar e das árvores soará a quê? E passava. Não vale a pena debruçarmo-nos muito em poços sem resposta.
A que soam as ondas? Como gritam as gaivotas? Qual o barulho da pá a enterrar-se e a desenterrar-se para fazer o túnel do miúdo de gorro e cachecol? A que soa a minha voz? O que ouves quando tento falar sem mãos?
Não interessa. Deixa. A fazer bodyboard mal se distinguem. Na prancha, talvez possamos duvidar.
Os surfistas, afinal, parecem gaivotas no mar. Aposto que o miúdo que não distingue um cão de uma vaca concorda comigo.
Lá fora, há um scooby-doo a dançar ao frio e a disparar areia, a correr para o pau, a voltar para o impermeável preto a trazer o pau, a correr para o pau, a voltar para trazer o pau.
Tem ar de ser divertido atirar o pau à vaca assim à beira-mar. O inverno traz destas coisas boas: ter a praia para nós e uns gatos-pingados de ondas bonitas, altas e borrifadoras. Gosto. Mas não sei ouvir o som do mar. Gostava, mas não. São tantos os que já apanhei sentados a olhar para o ondular da espuma que soará certamente a alguma coisa boa. Nunca ouvi nada. Quer dizer: ouço à minha maneira com estes ouvidos que não funcionam.
Quando lia Sophia, ou Nemésio, ou Pessoa, ou mesmo o Antero a rimar “as vozes do mar, das árvores, do vento!”, pensava sempre oh caraças: a voz do vento vá-que-não-vai, que é fria e despenteia; agora a voz do mar e das árvores soará a quê? E passava. Não vale a pena debruçarmo-nos muito em poços sem resposta.
A que soam as ondas? Como gritam as gaivotas? Qual o barulho da pá a enterrar-se e a desenterrar-se para fazer o túnel do miúdo de gorro e cachecol? A que soa a minha voz? O que ouves quando tento falar sem mãos?
Não interessa. Deixa. A fazer bodyboard mal se distinguem. Na prancha, talvez possamos duvidar.
Os surfistas, afinal, parecem gaivotas no mar. Aposto que o miúdo que não distingue um cão de uma vaca concorda comigo.
greve.
Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe
sobe a calçada.
Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas
não dá por nada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu a sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada,
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce o passeio,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Calçada de Carriche, António Gedeão
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe
sobe a calçada.
Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas
não dá por nada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu a sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada,
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce o passeio,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Calçada de Carriche, António Gedeão
(Swallows, Paula Rego)
domingo, 22 de fevereiro de 2015
sábado, 21 de fevereiro de 2015
o ébola.
Começou a sentir-se adoentado. Sem forças para brincar, nem sequer ver televisão, o Urso manteve-se na cama do Henrique até à sua chegada. Estava mesmo a precisar de ajuda. Ver a febre e os ouvidos, meter um supositório, pôr pomada das negras, um penso na barriga: o Urso estava doente.
À ida para casa, na rádio, o Henrique tinha ouvido um frufru sobre uma guineense que se supôs ter dado entrada no Hospital do Barreiro, e depois no Curry Cabral, com um bicharoco qualquer que causava febre. Epidemia iminente. Medo. Pessoas a aconselharem distância das unidades hospitalares. Pânico. Uns ignorantes a gozarem com a situação. Parvoíce ao quadrado.
Chegamos a casa, e o Urso está doente. Nos lençóis, na cama, com febre. O Henrique veste o pijama, deita-se e informa que o Urso não pode dormir com ele, ou ele fica doente também. E é fim de semana, não posso ficar doente, não é, mamã?
Não. Não é. Podes ficar doente, mas tens de te proteger para isso não acontecer. Não podes é deixar o Urso sozinho. Ele precisa de ti.
Então Urso e Henrique, cada um do seu lado da cama, para não se contagiarem, ouviram sobre uma doença. Uma doença tão grave tão grave como há tantas outras, que mata tanto e tão rapidamente como uma salva de tiros, pumpumpum, e de que todos fogem. Uma doença causada por um bicharoco, um vírus, que está no sangue e nos vómitos, mas também, imagina, na transpiração, sim aquilo que molha os pés quando está calor e calçamos as botas quentes. Se ninguém ousar chegar ao pé do doente, ele morre. Morre, percebes? Se ele está doente, precisa de ser tratado. É preciso termos cuidado, sim, daí os médicos porem uma bata, luvas, máscaras. Para lidar com essas doenças, por vezes, até têm de vestir um fato de astronauta e óculos de mergulhador para se protegerem e os bichos não entrarem. Os doentes precisam, ou morrem. Não podemos deixar os outros sem ajuda, quando está ao nosso alcance ajudar… Temos de cuidar uns dos outros. Eu tenho de cuidar de ti e tu um dia vais cuidar de mim. Aliás, se eu cair aqui e bater com a cabeça, tens de sair e ir bater ali à porta da vizinha e chamá-la! Pois é, claro; pensa comigo. Tu não sabes telefonar!
E às vezes corremos riscos. Já fiquei com dor de barriga por tu teres dor de barriga. Posso ficar com tosse depois de ter cuidado de ti a tossir. Podemos ficar com o bicharoco do chulé dos outros. Mas temos de dar a nossa ajuda. Agora arranja-te.
Luz fechada, nem de propósito, quando já acho que pouco há a acrescentar àquilo que sei sobre o que se tem dito, chego a uma notícia da BBC Brasil. Uma médica brasileira a lutar contra o ébola na Guiné fala sobre o ritual do abraço. Diz que é tal o medo de se ser contagiado pelo vírus que, quando saem da área de isolamento do hospital, os doentes são recebidos pelos médicos com um abraço. Sempre. Sempre que saem, encaram médicos de peito aberto, sem fatos, sem máscaras, sem proteção, à vista de todos para que percam o estigma de "contagiosos" e voltem a ser aceites pela comunidade.
Alguns demoram a sê-lo. Alguns nunca o são.
E nos entretantos há médicos que morrem assim. E deveres cumpridos nos nossos abraços.
PS - Urso e Henrique dormiram juntos e abraçados.
À ida para casa, na rádio, o Henrique tinha ouvido um frufru sobre uma guineense que se supôs ter dado entrada no Hospital do Barreiro, e depois no Curry Cabral, com um bicharoco qualquer que causava febre. Epidemia iminente. Medo. Pessoas a aconselharem distância das unidades hospitalares. Pânico. Uns ignorantes a gozarem com a situação. Parvoíce ao quadrado.
Chegamos a casa, e o Urso está doente. Nos lençóis, na cama, com febre. O Henrique veste o pijama, deita-se e informa que o Urso não pode dormir com ele, ou ele fica doente também. E é fim de semana, não posso ficar doente, não é, mamã?
Não. Não é. Podes ficar doente, mas tens de te proteger para isso não acontecer. Não podes é deixar o Urso sozinho. Ele precisa de ti.
Então Urso e Henrique, cada um do seu lado da cama, para não se contagiarem, ouviram sobre uma doença. Uma doença tão grave tão grave como há tantas outras, que mata tanto e tão rapidamente como uma salva de tiros, pumpumpum, e de que todos fogem. Uma doença causada por um bicharoco, um vírus, que está no sangue e nos vómitos, mas também, imagina, na transpiração, sim aquilo que molha os pés quando está calor e calçamos as botas quentes. Se ninguém ousar chegar ao pé do doente, ele morre. Morre, percebes? Se ele está doente, precisa de ser tratado. É preciso termos cuidado, sim, daí os médicos porem uma bata, luvas, máscaras. Para lidar com essas doenças, por vezes, até têm de vestir um fato de astronauta e óculos de mergulhador para se protegerem e os bichos não entrarem. Os doentes precisam, ou morrem. Não podemos deixar os outros sem ajuda, quando está ao nosso alcance ajudar… Temos de cuidar uns dos outros. Eu tenho de cuidar de ti e tu um dia vais cuidar de mim. Aliás, se eu cair aqui e bater com a cabeça, tens de sair e ir bater ali à porta da vizinha e chamá-la! Pois é, claro; pensa comigo. Tu não sabes telefonar!
E às vezes corremos riscos. Já fiquei com dor de barriga por tu teres dor de barriga. Posso ficar com tosse depois de ter cuidado de ti a tossir. Podemos ficar com o bicharoco do chulé dos outros. Mas temos de dar a nossa ajuda. Agora arranja-te.
Luz fechada, nem de propósito, quando já acho que pouco há a acrescentar àquilo que sei sobre o que se tem dito, chego a uma notícia da BBC Brasil. Uma médica brasileira a lutar contra o ébola na Guiné fala sobre o ritual do abraço. Diz que é tal o medo de se ser contagiado pelo vírus que, quando saem da área de isolamento do hospital, os doentes são recebidos pelos médicos com um abraço. Sempre. Sempre que saem, encaram médicos de peito aberto, sem fatos, sem máscaras, sem proteção, à vista de todos para que percam o estigma de "contagiosos" e voltem a ser aceites pela comunidade.
Alguns demoram a sê-lo. Alguns nunca o são.
E nos entretantos há médicos que morrem assim. E deveres cumpridos nos nossos abraços.
PS - Urso e Henrique dormiram juntos e abraçados.
sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015
a indiferença.
Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,
Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar,
Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida,
E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida.
A vida é como uma sombra que passa por sobre um rio
Ou como um passo na alfombra de um quarto que jaz vazio;
O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é;
A glória concede e nega; não tem verdades a fé.
Por isso na orla morena da praia calada e só,
Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó;
Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido,
E comecei a morrer muito antes de ter vivido.
Dêem-me, onde aqui jazo, só uma brisa que passe,
Não quero nada do acaso, senão a brisa na face;
Dêem-me um vago amor de quanto nunca terei,
Não quero gozo nem dor, não quero vida nem lei.
Só, no silêncio cercado pelo som brusco do mar,
Quero dormir sossegado, sem nada que desejar,
Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu,
Tocado do ar sem fragrância da brisa de qualquer céu.
Fernando Pessoa
Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar,
Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida,
E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida.
A vida é como uma sombra que passa por sobre um rio
Ou como um passo na alfombra de um quarto que jaz vazio;
O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é;
A glória concede e nega; não tem verdades a fé.
Por isso na orla morena da praia calada e só,
Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó;
Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido,
E comecei a morrer muito antes de ter vivido.
Dêem-me, onde aqui jazo, só uma brisa que passe,
Não quero nada do acaso, senão a brisa na face;
Dêem-me um vago amor de quanto nunca terei,
Não quero gozo nem dor, não quero vida nem lei.
Só, no silêncio cercado pelo som brusco do mar,
Quero dormir sossegado, sem nada que desejar,
Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu,
Tocado do ar sem fragrância da brisa de qualquer céu.
Fernando Pessoa
quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015
quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015
o sal.
A Dona Plasticina tem cabelo cor-de-rosa-choque e gosta do Fernando Pessoa. Vai à escola dos piratas no dia de Carnaval ler a Mensagem. Leva uma garrafa, distribui copos pelos miúdos mascarados e, antes de soltar um Ó mar salgado pede para todos meterem o dedo no copo e para o levarem à boca.
Alguém sabe o que é? Água do mar? Quase. Pois é: água salgada. Nós bebemos água salgada ou doce? Doce, pois é. Mas não é só no mar que há água salgada. Onde é que há água salgada, sabem? Não, na chuva não. Nos rios também não: essa é doce. Na comida quando está salgada não comemos, não é? Eu conto-vos: é nas lágrimas. As lágrimas também são salgadas, sabiam?
Por isso é que o Fernando Pessoa pergunta ao mar quanto do teu sal são lágrimas de Portugal. Quando os navegadores partiam nas caravelas, deixavam os filhos, as mães e as noivas com medo que lhes acontecesse alguma coisa. E quando temos medo que aconteça alguma coisa choramos, não é?
Então, quem é que já provou as lágrimas? Tu já? Três lágrimas? Ena, tantas. Cinco? Uau! E então, eram salgadas? E tu também? Boa! Todos provaram. Ai não? Então da próxima vez que chorarem experimentem provar as lágrimas, combinado? Ótimo. Ai tu não? Não podes? A sério que não deixa? Oh...
A mãe do pirata da Sala Vermelha é favor levantar a proibição de ele provar as lágrimas. Pelas alminhas. Obrigada.
Alguém sabe o que é? Água do mar? Quase. Pois é: água salgada. Nós bebemos água salgada ou doce? Doce, pois é. Mas não é só no mar que há água salgada. Onde é que há água salgada, sabem? Não, na chuva não. Nos rios também não: essa é doce. Na comida quando está salgada não comemos, não é? Eu conto-vos: é nas lágrimas. As lágrimas também são salgadas, sabiam?
Por isso é que o Fernando Pessoa pergunta ao mar quanto do teu sal são lágrimas de Portugal. Quando os navegadores partiam nas caravelas, deixavam os filhos, as mães e as noivas com medo que lhes acontecesse alguma coisa. E quando temos medo que aconteça alguma coisa choramos, não é?
Então, quem é que já provou as lágrimas? Tu já? Três lágrimas? Ena, tantas. Cinco? Uau! E então, eram salgadas? E tu também? Boa! Todos provaram. Ai não? Então da próxima vez que chorarem experimentem provar as lágrimas, combinado? Ótimo. Ai tu não? Não podes? A sério que não deixa? Oh...
A mãe do pirata da Sala Vermelha é favor levantar a proibição de ele provar as lágrimas. Pelas alminhas. Obrigada.
terça-feira, 17 de fevereiro de 2015
palavras para jardins.
Não consegues desenhar. Dizes que não consegues desenhar. Gostarias de conseguir desenhar. Vês. Vês coisas. Vês pessoas. Vês pessoas movendo coisas. Vês pessoas movendo pessoas. Vês coisas que não se movem de modo algum. Vês coisas movidas por pessoas. Vês coisas que se movem sem notares. Tu notas que elas se moveram mas só algum tempo mais tarde. Elas estiveram a mover-se todo o tempo. Regressas e elas estão mudadas. E então dizes: “Elas cresceram.” E elas continuam a crescer sem que o vejas. E regressas mais tarde. Tu então vês que elas já lá não estão. E dizes: “Elas desapareceram.” Relva. Consegues desenhar relva. Em infindáveis folhas de papel. Começando onde quiseres. Não interessa. Indo para onde quiseres. Não interessa. Tocas a superfície do papel com um movimento rápido e intenso da tua mão. Para no ponto de toque. Apercebes-te do que acabaste de fazer e dizes: “Eu desenhei um ponto. Eu estou agarrado a este ponto. Para onde vou daqui?” Segue numa direção qualquer. Deixa que a intensidade do teu gesto se esbata deixando para trás uma curta linha ligeiramente curva que se vá esbatendo. Desenha outro ponto intenso. Deixa-o esbater-se ao longo de outra linha ligeiramente curva que se vá esbatendo ao longo de outra linha ligeiramente curva agora projetada noutra direção. E outro ponto ao longo de outra linha noutra direção qualquer. E outro ponto e outra linha outra vez noutra direção. E outra vez e outra vez e outra vez. Olhas. E dizes: “Está a crescer.” E vais em todas as direções. Intercetando as curtas linhas ligeiramente curvas que se esbatem e surgem de pontos intensos plantados por toda a parte. E dizes: “A relva está a crescer depressa.” Então paras por um momento. Olhas para a relva no chão e dizes: “Há um espaço livre aqui.” E enche-lo de relva. Depois notas outro espaço vazio deste lado e outro daquele lado e depois outro à esquerda e outro à esquerda e outro a sul e um outro a sudeste. Vais continuando a plantar relva até o chão ficar todo ele coberto. Observas a paisagem. E então dizes: “Está tudo verde e macio."
Texto referente à instalação Words for gardens (2006/07), de Luísa Cunha (versão portuguesa da autora), retirado do livrete Pode o museu ser um jardim?, Obras da coleção de Serralves, 06 fev - 13 set 2015.
Texto referente à instalação Words for gardens (2006/07), de Luísa Cunha (versão portuguesa da autora), retirado do livrete Pode o museu ser um jardim?, Obras da coleção de Serralves, 06 fev - 13 set 2015.
sábado, 14 de fevereiro de 2015
quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015
gente feliz com lágrimas.
Quando os seus braços musculados se abriram para o meu corpo delgado, senti que o peito se lhe tornara discretamente ofegante, ao reconciliar-se com o meu. E, estando eu morto, ressuscitei. E, pedindo-me ele de novo que comesse, agarrei na tigela com as mãos muito trémulas e pus-me a sorver, em apressados e sôfregos tragos, aquele delicioso caldinho de farinha, com cujo sabor se cruzou para sempre a memória doce da minha infância. E os olhos dele, rasando-se de lágrimas, eram afinal olhos felizes com lágrimas - assim você me perdoe o facto de a minha história comportar também episódios felizes...
João de Melo
João de Melo
quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015
dizer algo cheio de razão.
Não sei como dizer-te que a minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e casta.
Não sei o que quer dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
- eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.
Quando as folhas de melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu ascético escuro e em turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a minha cara ardesse pousada na noite.
- E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
- não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.
Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me falta
um girassol, uma pedra, uma ave qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o leite, a mãe,
o amor,
que te procuram.
Herberto Hélder
terça-feira, 10 de fevereiro de 2015
a crocância das coisas.
Nunca pensei apaixonar-me por um Zé. Aliás, lembro-me de a professora de ginástica nos ter posto menino com menino, menina com menina, só para facilitar a logística dos balneários no sarau de final do ano, e eu fui dos que menos piada acharam à coisa. Tivessem-me dito que iria casar com um homem, e teria armado uma luta daquelas fortes que nos fazia saltar os botões à bata.
Andavam todos doidos com a Sara quando reparei no primeiro rapaz de quem viria a gostar. Ia jurar que ele me tinha olhado de forma diferente. Depois percebi que não. Aliás safei-me cedo o suficiente para não o confrontar com isso, a tempo de conversar com ele sobre as mamas grandes da Teresa, antes de pôr a minha adolescência a explicar como eu sentia a homossexualidade.
Quando fui para a Polícia, também planeei bem a coisa. Queria seguir a carreira, sabes bem que era o meu sonho, não podia desconcentrar-me. Foi nessa altura que ganhei o hábito de ter os fones sempre postos. Agora, no autocarro, ajudam a indicar que não, não estou de serviço, às velhotas que insistem em meter conversa. Ler no autocarro não leio. Põe-me maldisposto, e nem tinha onde guardar o livro na esquadra.
Não foste o meu primeiro homem, mas nunca ninguém tinha planeado nada comigo antes de existires. Antes ninguém fez planos. Rabiscavam números de telefone, piropos, trocavam livros comigo, flirtavam, aviavam bilhetes de cinema. Quando saíamos e me perguntavam se namorava, não sabia dizer se sim se não. Agora sei sempre. Crescemos com a cumplicidade de a tua família não saber, de a minha família desconfiar, mas não querer saber também, e de agora ambas estarem bem com isso. Que remédio, pois.
Gosto de te ter encontrado e sou feliz. Já vai o tempo em que sentia medo; agora descobri-te na serenidade que encontrei por poder assumir quem sou. Não resisto a sonhar que pode ser agora, agora que todos sabem, que pode ser de vez. E gosto que me chames Trengo quando te referes a mim. Gosto. Sempre gostei de focar novos sentidos para as palavras no meu mundo. Isso e de inventar palavras novas. Na semana passada, por exemplo, nas notícias da rádio, foquei-me no chamado "campeonato do mundo das frutas e legumes" que estava a juntar a malta da enxada e dos tratores em Berlim. Um homem que promovia o stand português na feira falava na crocância da pera-rocha. E eu derreti: o tipo também deve ser feliz.
É bom inventar palavras. E sentidos para as que existem. Chamamos ao miúdo Piolho e à miúda, Cabrita. Pomos a mão na barriga da irmã e perguntamos-lhe como vai a Alcachofra. Há uns tempos, na Net, encontrei a frase: “Livro é tão bom que devia ser elogio. Tipo: você é tão livro.” E pensei que esse era o tipo de alcunha que não me importava de ter.
Com o tempo fica-se com o nome que nos põem estampado na cara, não há melhor para definir quem somos, como agimos. Que importa se não é nome de gente. Crescemos e passamos a ser uma palavra que veio à cabeça de alguém. Quer dizer, nem sempre é bom, claro: ser o Agente-Piscas porque tenho um tique nos olhos ou Passa-Que-Eu-Chuto por ter partido a pata na faculdade não é propriamente elogioso, também não sou um calhau.
Adiante, tanto paleio porque há algo que te quero contar. Ontem guardei o teu número no A. Desculpa, deve ser coisa de gaja, mas estava a precisar disto para te encontrar. Agora é mais fácil chegar até ti. Acho que é melhor encontrar-te do que ficar sem saber como te falar quando preciso, e eu preciso mesmo, de saber quanto tempo demorarás, quando preciso, e eu preciso mesmo, de te falar.
Sabes, sempre recebi chamadas que não eram para mim. Desculpa, não era para ti, mas, já agora: tudo bem? Era só por ser o primeiro. Por o meu nome começar por A. A ti, sempre me custou encontrar-te. Quando queria dizer uma coisa qualquer importante que não podia passar de então, tipo, olá estou de folga há salmão para jantar gosto de ti, tinha de abrir a lista dos contactos e carregar na seta para baixo trinta, quarenta, cem vezes. Tinha de passar o alfabeto para chegar ao Z, demorava um ror de letras para chegar até ti.
E, então, foi isto que aconteceu. Enquanto ouvia lá o tipo a babar pela pera-rocha, decidi mudar-te o nome. Desde então chamo-te Amor. Coisa estranha para um polícia fazer, não é? Pouco importa. Sabes que mais? Resulta. Agora és o primeiro, e tudo se torna mais fácil. Desculpa, mas sabes bem que os homens precisam destas muletas para conseguirem lá chegar. Mesmo os agentes da autoridade têm de ter ajuda, mais que não seja para mandarem parar quem pisa o risco e nos está a endrominar.
Sabes, desejo chegar ao momento em que já não terei de me preocupar; ligarei para ti sem fazer nada, o bicho fará a chamada sozinho. E, esteja na esquadra ou na paragem, tenha ou não vestida a farda, demore-se ou não o 36 onde sigo de fones nos ouvidos, quando der por ela estive a partilhar contigo o que fazia enquanto o meu telefone ligava ao Amor.
Eu não preciso, deixa. Podes escrever o meu nome, e o apelido, e a alcunha, e entre parêntesis onde trabalho, e colocar uma praia como minha foto de contacto, desde que não esqueças quem sou, onde estou, desde que me trates como o primeiro da lista.
Mas posso contar-te um segredo? Mudar-te o nome tornou tudo mais fácil. Agora ligar-te é do mais simples que há. E, claro, quando recebo a tua chamada, sou incapaz de rejeitar o Amor.
segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015
sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015
subimos ao B.
Parabéns, filho, por mais uma vitória. O goalball em Portugal é maior e melhor por tu existires. Sou toda orgulho.
(European Championship Men C 2015, Malmö, Sweden)
quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015
a despensa.
Não é fácil encher a despensa quando não há dinheiro para comprar. Não dá para acarretar os sacos se não se tiver como os encher. Claro que há famílias a quem pouco lhes basta, e outras que precisam de muito e não chega. E com isto se faz uma sociedade, dirão.
Mas quem decide o que cabe a quem? Onde está a justiça? É certo que as empresas privadas têm interesses económicos muitas vezes incontroláveis, mas não haverá uma obrigação do Estado em diminuir o fosso entre o apoio dado a uns e a outros cidadãos?
Muitos dos jogadores da Selecção Nacional de Futebol chegam ao final dos jogos e atiram as camisolas para os fãs das bancadas, ganhem ou não a partida. Nunca constou que tivessem jogado nus nos jogos seguintes por falta de equipamento, não que me importasse de ver um ou outro a lidar com tamanha tragédia. Têm patrocínios das marcas para a roupa que vestem, tanto no treino como no passeio com o cão ao domingo, mesmo se estiverem há meses no banco. Ganham um salário (a sério, eles ganham um salário por jogarem na Selecção Nacional). Não receiam não haver verba para poderem estar presentes numa competição internacional. Ganhem ou não. Deslocam-se aos campeonatos com treinadores, massagistas, médicos, fisioterapeutas, fazedores de cafuné e aparadores de pelos do nariz. Só para terem uma ideia, no último Mundial de futebol, a comitiva portuguesa era composta por 55 pessoas, 32 das quais eram staff credenciado pela FIFA… Penso que não estarei muito errada por supor que este grupo de pessoas terá um salário minimamente adequado às funções que desempenha junto da equipa.
Hei, não me interpretem mal. Tudo isto está bem. Só lamento que não seja para todos. Se há uma equipa a representar o país, deve ter apoio, claro. Afinal, quem sou eu para me pronunciar sobre se é a mais ou se está bem assim?
Bem, sou mãe. E, sinceramente, em cada cêntimo de impostos que pago vai a minha revolta quanto ao apoio dado aos cidadãos com deficiência em geral e aos praticantes de desportos adaptados em particular, mesmo se, sublinho isto, jogarem com a camisola das Quinas.
E o que define, afinal, o critério? Arrisco dizer que é a despensa. Há quem não saiba quanto custa uma dúzia de ovos. E há quem consiga faça omeletes sem eles.
Parabéns, Seleção Nacional de Goalball, pela subida ao grupo B.
Mas quem decide o que cabe a quem? Onde está a justiça? É certo que as empresas privadas têm interesses económicos muitas vezes incontroláveis, mas não haverá uma obrigação do Estado em diminuir o fosso entre o apoio dado a uns e a outros cidadãos?
Muitos dos jogadores da Selecção Nacional de Futebol chegam ao final dos jogos e atiram as camisolas para os fãs das bancadas, ganhem ou não a partida. Nunca constou que tivessem jogado nus nos jogos seguintes por falta de equipamento, não que me importasse de ver um ou outro a lidar com tamanha tragédia. Têm patrocínios das marcas para a roupa que vestem, tanto no treino como no passeio com o cão ao domingo, mesmo se estiverem há meses no banco. Ganham um salário (a sério, eles ganham um salário por jogarem na Selecção Nacional). Não receiam não haver verba para poderem estar presentes numa competição internacional. Ganhem ou não. Deslocam-se aos campeonatos com treinadores, massagistas, médicos, fisioterapeutas, fazedores de cafuné e aparadores de pelos do nariz. Só para terem uma ideia, no último Mundial de futebol, a comitiva portuguesa era composta por 55 pessoas, 32 das quais eram staff credenciado pela FIFA… Penso que não estarei muito errada por supor que este grupo de pessoas terá um salário minimamente adequado às funções que desempenha junto da equipa.
Hei, não me interpretem mal. Tudo isto está bem. Só lamento que não seja para todos. Se há uma equipa a representar o país, deve ter apoio, claro. Afinal, quem sou eu para me pronunciar sobre se é a mais ou se está bem assim?
Bem, sou mãe. E, sinceramente, em cada cêntimo de impostos que pago vai a minha revolta quanto ao apoio dado aos cidadãos com deficiência em geral e aos praticantes de desportos adaptados em particular, mesmo se, sublinho isto, jogarem com a camisola das Quinas.
E o que define, afinal, o critério? Arrisco dizer que é a despensa. Há quem não saiba quanto custa uma dúzia de ovos. E há quem consiga faça omeletes sem eles.
Parabéns, Seleção Nacional de Goalball, pela subida ao grupo B.
quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015
da ignorância.
A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A
música embala, as artes visuais animam, as artes vivas (como a dança e a arte
de representar) entretêm. A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela
um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida - umas porque usam de
fórmulas visíveis e portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana.
Não é o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do
que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a
expressão de ideias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois
que ninguém fala em verso.
Fernando Pessoa
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