Nunca pensei apaixonar-me por um Zé. Aliás, lembro-me de a professora de ginástica nos ter posto menino com menino, menina com menina, só para facilitar a logística dos balneários no sarau de final do ano, e eu fui dos que menos piada acharam à coisa. Tivessem-me dito que iria casar com um homem, e teria armado uma luta daquelas fortes que nos fazia saltar os botões à bata.
Andavam todos doidos com a Sara quando reparei no primeiro rapaz de quem viria a gostar. Ia jurar que ele me tinha olhado de forma diferente. Depois percebi que não. Aliás safei-me cedo o suficiente para não o confrontar com isso, a tempo de conversar com ele sobre as mamas grandes da Teresa, antes de pôr a minha adolescência a explicar como eu sentia a homossexualidade.
Quando fui para a Polícia, também planeei bem a coisa. Queria seguir a carreira, sabes bem que era o meu sonho, não podia desconcentrar-me. Foi nessa altura que ganhei o hábito de ter os fones sempre postos. Agora, no autocarro, ajudam a indicar que não, não estou de serviço, às velhotas que insistem em meter conversa. Ler no autocarro não leio. Põe-me maldisposto, e nem tinha onde guardar o livro na esquadra.
Não foste o meu primeiro homem, mas nunca ninguém tinha planeado nada comigo antes de existires. Antes ninguém fez planos. Rabiscavam números de telefone, piropos, trocavam livros comigo, flirtavam, aviavam bilhetes de cinema. Quando saíamos e me perguntavam se namorava, não sabia dizer se sim se não. Agora sei sempre. Crescemos com a cumplicidade de a tua família não saber, de a minha família desconfiar, mas não querer saber também, e de agora ambas estarem bem com isso. Que remédio, pois.
Gosto de te ter encontrado e sou feliz. Já vai o tempo em que sentia medo; agora descobri-te na serenidade que encontrei por poder assumir quem sou. Não resisto a sonhar que pode ser agora, agora que todos sabem, que pode ser de vez. E gosto que me chames Trengo quando te referes a mim. Gosto. Sempre gostei de focar novos sentidos para as palavras no meu mundo. Isso e de inventar palavras novas. Na semana passada, por exemplo, nas notícias da rádio, foquei-me no chamado "campeonato do mundo das frutas e legumes" que estava a juntar a malta da enxada e dos tratores em Berlim. Um homem que promovia o stand português na feira falava na crocância da pera-rocha. E eu derreti: o tipo também deve ser feliz.
É bom inventar palavras. E sentidos para as que existem. Chamamos ao miúdo Piolho e à miúda, Cabrita. Pomos a mão na barriga da irmã e perguntamos-lhe como vai a Alcachofra. Há uns tempos, na Net, encontrei a frase: “Livro é tão bom que devia ser elogio. Tipo: você é tão livro.” E pensei que esse era o tipo de alcunha que não me importava de ter.
Com o tempo fica-se com o nome que nos põem estampado na cara, não há melhor para definir quem somos, como agimos. Que importa se não é nome de gente. Crescemos e passamos a ser uma palavra que veio à cabeça de alguém. Quer dizer, nem sempre é bom, claro: ser o Agente-Piscas porque tenho um tique nos olhos ou Passa-Que-Eu-Chuto por ter partido a pata na faculdade não é propriamente elogioso, também não sou um calhau.
Adiante, tanto paleio porque há algo que te quero contar. Ontem guardei o teu número no A. Desculpa, deve ser coisa de gaja, mas estava a precisar disto para te encontrar. Agora é mais fácil chegar até ti. Acho que é melhor encontrar-te do que ficar sem saber como te falar quando preciso, e eu preciso mesmo, de saber quanto tempo demorarás, quando preciso, e eu preciso mesmo, de te falar.
Sabes, sempre recebi chamadas que não eram para mim. Desculpa, não era para ti, mas, já agora: tudo bem? Era só por ser o primeiro. Por o meu nome começar por A. A ti, sempre me custou encontrar-te. Quando queria dizer uma coisa qualquer importante que não podia passar de então, tipo, olá estou de folga há salmão para jantar gosto de ti, tinha de abrir a lista dos contactos e carregar na seta para baixo trinta, quarenta, cem vezes. Tinha de passar o alfabeto para chegar ao Z, demorava um ror de letras para chegar até ti.
E, então, foi isto que aconteceu. Enquanto ouvia lá o tipo a babar pela pera-rocha, decidi mudar-te o nome. Desde então chamo-te Amor. Coisa estranha para um polícia fazer, não é? Pouco importa. Sabes que mais? Resulta. Agora és o primeiro, e tudo se torna mais fácil. Desculpa, mas sabes bem que os homens precisam destas muletas para conseguirem lá chegar. Mesmo os agentes da autoridade têm de ter ajuda, mais que não seja para mandarem parar quem pisa o risco e nos está a endrominar.
Sabes, desejo chegar ao momento em que já não terei de me preocupar; ligarei para ti sem fazer nada, o bicho fará a chamada sozinho. E, esteja na esquadra ou na paragem, tenha ou não vestida a farda, demore-se ou não o 36 onde sigo de fones nos ouvidos, quando der por ela estive a partilhar contigo o que fazia enquanto o meu telefone ligava ao Amor.
Eu não preciso, deixa. Podes escrever o meu nome, e o apelido, e a alcunha, e entre parêntesis onde trabalho, e colocar uma praia como minha foto de contacto, desde que não esqueças quem sou, onde estou, desde que me trates como o primeiro da lista.
Mas posso contar-te um segredo? Mudar-te o nome tornou tudo mais fácil. Agora ligar-te é do mais simples que há. E, claro, quando recebo a tua chamada, sou incapaz de rejeitar o Amor.
Sem comentários:
Enviar um comentário