À ida para casa, na rádio, o Henrique tinha ouvido um frufru sobre uma guineense que se supôs ter dado entrada no Hospital do Barreiro, e depois no Curry Cabral, com um bicharoco qualquer que causava febre. Epidemia iminente. Medo. Pessoas a aconselharem distância das unidades hospitalares. Pânico. Uns ignorantes a gozarem com a situação. Parvoíce ao quadrado.
Chegamos a casa, e o Urso está doente. Nos lençóis, na cama, com febre. O Henrique veste o pijama, deita-se e informa que o Urso não pode dormir com ele, ou ele fica doente também. E é fim de semana, não posso ficar doente, não é, mamã?
Não. Não é. Podes ficar doente, mas tens de te proteger para isso não acontecer. Não podes é deixar o Urso sozinho. Ele precisa de ti.
Então Urso e Henrique, cada um do seu lado da cama, para não se contagiarem, ouviram sobre uma doença. Uma doença tão grave tão grave como há tantas outras, que mata tanto e tão rapidamente como uma salva de tiros, pumpumpum, e de que todos fogem. Uma doença causada por um bicharoco, um vírus, que está no sangue e nos vómitos, mas também, imagina, na transpiração, sim aquilo que molha os pés quando está calor e calçamos as botas quentes. Se ninguém ousar chegar ao pé do doente, ele morre. Morre, percebes? Se ele está doente, precisa de ser tratado. É preciso termos cuidado, sim, daí os médicos porem uma bata, luvas, máscaras. Para lidar com essas doenças, por vezes, até têm de vestir um fato de astronauta e óculos de mergulhador para se protegerem e os bichos não entrarem. Os doentes precisam, ou morrem. Não podemos deixar os outros sem ajuda, quando está ao nosso alcance ajudar… Temos de cuidar uns dos outros. Eu tenho de cuidar de ti e tu um dia vais cuidar de mim. Aliás, se eu cair aqui e bater com a cabeça, tens de sair e ir bater ali à porta da vizinha e chamá-la! Pois é, claro; pensa comigo. Tu não sabes telefonar!
E às vezes corremos riscos. Já fiquei com dor de barriga por tu teres dor de barriga. Posso ficar com tosse depois de ter cuidado de ti a tossir. Podemos ficar com o bicharoco do chulé dos outros. Mas temos de dar a nossa ajuda. Agora arranja-te.
Luz fechada, nem de propósito, quando já acho que pouco há a acrescentar àquilo que sei sobre o que se tem dito, chego a uma notícia da BBC Brasil. Uma médica brasileira a lutar contra o ébola na Guiné fala sobre o ritual do abraço. Diz que é tal o medo de se ser contagiado pelo vírus que, quando saem da área de isolamento do hospital, os doentes são recebidos pelos médicos com um abraço. Sempre. Sempre que saem, encaram médicos de peito aberto, sem fatos, sem máscaras, sem proteção, à vista de todos para que percam o estigma de "contagiosos" e voltem a ser aceites pela comunidade.
Alguns demoram a sê-lo. Alguns nunca o são.
E nos entretantos há médicos que morrem assim. E deveres cumpridos nos nossos abraços.
PS - Urso e Henrique dormiram juntos e abraçados.
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