Trinta e seis dá para ter menos de quatro quilos e mais de noventa. Para cabelos loiros, castanhos, pretos, acobreados, listados, arroxeados. Raízes à mostra e brancos. Pôr extensões e tirar extensões. Duas vezes. Dá para arrancar milhares de pelos das pernas uma e outra vez, uma e outra vez, uma e outra vez. Ao longo de anos. E ficar com peladas. Dá para partir a cabeça e ser operada. A fingir, no quarto dos miúdos, e a sério. Para agarrar a barriga, para não ter barriga, para mostrar a barriga, para a encolher. Para caras feias e sorrisos amarelos. Dá para cáries, dores de cabeça, comichão nas axilas, sardas, arranhões e feridas. Dá para cortar os dedos com a faca trinta vezes. Ou mais. Dá para pintar a cara com maquilhagem e esferográficas. Para ouvir ralhetes e ralhar, levar e dar palmadas. Dá para pedir, inventar, ouvir, aceitar e engolir desculpas. Esfarrapadas e das boas. Dá para gostar e para não gostar da forma do nariz, das orelhas, das pernas. Dá para beber milhares de litros de água e para morrer de sede. Dá para perder o embalo. E o autocarro. E o metro. Por um triz ou por muito. Dá para ganhar coragem, para falar, para calar, para gritar. Tanto.
Trinta e seis dá para errar e para acertar em cheio. Para ser enganada, endrominada, surpreendida, assustada, beliscada, ajudada, amada, tão amada. Dá para ter e fazer cócegas. Para parir. Para ter medo. Para escorregar. Dá para apanhar azeitonas, cerejas, maçãs, pêras e romãs. Equilibrada numa só perna. Dá para ser fotografada a ler na árvore. Para comer mais do que a conta e para ter fome. Torcer o nariz ao almoço da mãe e pensar em milhares de pratos que os miúdos podem ou não gostar. Dá para queimar o jantar. Noventa e sete dietas. Centenas de chocolates.
Seis sobrinhos, cinco patrões, quatro avós, três casas, dois irmãos, um afilhado, zero abortos. Dezenas de sustos, namorados, medalhas de minimaratonas. Uns quantos acidentes e umas quantas mortes.
Trinta e seis dá para ser traída, para desconfiar. Para o arrependimento. Profundo. Para contar histórias e inventar. Para ler livros, saltar páginas. Guardar segredos. Sorrir. Chorar.
Trinta e seis anos dá para tudo.
sexta-feira, 29 de maio de 2015
sábado, 23 de maio de 2015
da dor.
Não é preciso haver sinais a avisar-nos de que chegámos ao topo. E ainda assim deixamos de erguer a perna e paramos de subir. Quer dizer, temos dias. Quem nunca alçou a canela sem ter escada para trepar?
Não há nada que nos impeça de comer mais uma cereja, e mais uma e mais uma. E paramos, porque mais são demais. E faz doer a barriga.
Quando discutimos e queremos ir ao fundo, ninguém se levanta enquanto não tivermos uma conclusão, ninguém sai daqui enquanto não souber quem fez isto. Mas lá chega a altura em que paramos e mudamos de assunto. Em que saímos para ir fazer um chichi, vou ali à casa de banho. Em que temos só de preparar qualquer coisa para comer, não ligas ao teu irmão? E depois, sem querer, sem sinal nenhum para nos fazer mudar, não conseguimos o mesmo semblante, onde o pus? Voltamos com outra cara. E se mandamos uma trouxada no móvel quando passamos ainda temos desculpa para a cara má, ui magoaste-te?, mas quando vamos direitos à porta da sala já não sabemos do queixume. Onde o pus, onde íamos? Ui, magoaste-te? Já não sabemos qual o queixume.
Face a uma ferida, a um penso, a uma crosta que sara, a uns pontos a repuxar, ninguém pergunta se pode tocar, ninguém chega nem perto. Parece que até o ar pode magoar. Olha-se de longe, de cima, para não incomodar demasiado. Fico aqui sentada a olhar para ti, estás com bom aspeto. Parece sequinha a ferida, vê-se daqui de cima que está sequinha. Não há redomas a barrar o acesso, e ninguém ousa aproximar-se para não magoar. Dói-te? Mais vale não mexer, está quase boa. Vê-se daqui, vejo bem daqui aí em baixo, não é preciso tocar.
Não temos de ir trabalhar, não vamos dar de comer a ninguém, não há compromissos, tratam dos nossos por nós. E mesmo assim saímos da cama, por muito que pareçamos centenários a virar-nos de lado e a agarrar a barriga, saímos da cama. E banho dentes pentear voltar a deitar. Não há um despertador que nos diga que chegou a hora de levantar. Não há quem nos veja, fotografe, quem escreva sobre nós, para nos obrigar a tratar-nos. E mesmo assim fazemo-lo. E, ainda que estejamos sozinhos, perguntamo-nos se nos dói. Ora deixa cá ver como eu estou hoje. E vamos melhorando. Ninguém precisa de perguntar como estamos e vamo-nos tratando e melhorando.
E as pequenas vitórias, como hoje já dormiste de lado ou vês tão rápido que te levantas, mostram que já quase não dói. Continuamos a ter limites e não queremos sinais que nos imponham os limites (tarda nada deixará de doer, tens de ter cuidado quando deixar de doer). E precisamos de saber quando parar de subir as escadas, quando não comer mais cerejas, quando não tocar. Vais proteger-te quando deixar de doer. E, mesmo que nos apeteça fechar os olhos e ter pena de nós próprios, temos de continuar a tratar-nos. Erguemo-nos e levantamo-nos, mais ou menos chochos, com muita ou pouca vontade de ver gente, mas erguemo-nos e levantamo-nos. Sempre com a consciência das feridas que estão por sarar. Se eu tocar aqui, dói-te?
Fina. Pronta pra outra.
Não há nada que nos impeça de comer mais uma cereja, e mais uma e mais uma. E paramos, porque mais são demais. E faz doer a barriga.
Quando discutimos e queremos ir ao fundo, ninguém se levanta enquanto não tivermos uma conclusão, ninguém sai daqui enquanto não souber quem fez isto. Mas lá chega a altura em que paramos e mudamos de assunto. Em que saímos para ir fazer um chichi, vou ali à casa de banho. Em que temos só de preparar qualquer coisa para comer, não ligas ao teu irmão? E depois, sem querer, sem sinal nenhum para nos fazer mudar, não conseguimos o mesmo semblante, onde o pus? Voltamos com outra cara. E se mandamos uma trouxada no móvel quando passamos ainda temos desculpa para a cara má, ui magoaste-te?, mas quando vamos direitos à porta da sala já não sabemos do queixume. Onde o pus, onde íamos? Ui, magoaste-te? Já não sabemos qual o queixume.
Face a uma ferida, a um penso, a uma crosta que sara, a uns pontos a repuxar, ninguém pergunta se pode tocar, ninguém chega nem perto. Parece que até o ar pode magoar. Olha-se de longe, de cima, para não incomodar demasiado. Fico aqui sentada a olhar para ti, estás com bom aspeto. Parece sequinha a ferida, vê-se daqui de cima que está sequinha. Não há redomas a barrar o acesso, e ninguém ousa aproximar-se para não magoar. Dói-te? Mais vale não mexer, está quase boa. Vê-se daqui, vejo bem daqui aí em baixo, não é preciso tocar.
Não temos de ir trabalhar, não vamos dar de comer a ninguém, não há compromissos, tratam dos nossos por nós. E mesmo assim saímos da cama, por muito que pareçamos centenários a virar-nos de lado e a agarrar a barriga, saímos da cama. E banho dentes pentear voltar a deitar. Não há um despertador que nos diga que chegou a hora de levantar. Não há quem nos veja, fotografe, quem escreva sobre nós, para nos obrigar a tratar-nos. E mesmo assim fazemo-lo. E, ainda que estejamos sozinhos, perguntamo-nos se nos dói. Ora deixa cá ver como eu estou hoje. E vamos melhorando. Ninguém precisa de perguntar como estamos e vamo-nos tratando e melhorando.
E as pequenas vitórias, como hoje já dormiste de lado ou vês tão rápido que te levantas, mostram que já quase não dói. Continuamos a ter limites e não queremos sinais que nos imponham os limites (tarda nada deixará de doer, tens de ter cuidado quando deixar de doer). E precisamos de saber quando parar de subir as escadas, quando não comer mais cerejas, quando não tocar. Vais proteger-te quando deixar de doer. E, mesmo que nos apeteça fechar os olhos e ter pena de nós próprios, temos de continuar a tratar-nos. Erguemo-nos e levantamo-nos, mais ou menos chochos, com muita ou pouca vontade de ver gente, mas erguemo-nos e levantamo-nos. Sempre com a consciência das feridas que estão por sarar. Se eu tocar aqui, dói-te?
Fina. Pronta pra outra.
quarta-feira, 20 de maio de 2015
a porta.
Foi há quarenta anos. Como se chamava ele?
Tinha vinte quando foi saneado de punho fechado. Mulher, três filhos, tinha pertencido à guarda fronteiriça e, como tal, não conseguia negar as ligações à PIDE. Acredita em mim. Estava-se mesmo a ver que tinha ligações à PIDE, tresandava a PIDE. Ela acreditou. Mesmo quando foi enxotado com murros no ar que não se respirava na sala cheia de gente a votar quem merecia e quem não merecia ficar, ela acreditou. Tresandava a PIDE, não mereceu ficar. Os braços erguidos gritavam para ele ir embora. E ele foi. Deixou mulher. Deixou um, dois, três filhos pequenos, para ir para a Zâmbia. Diz que o exílio foi na Zâmbia, onde continuou a trabalhar.
Ela também ficou, revoltada. Ele era bom, trabalhador, cheirava nada a PIDE, cheirava bem. Cheirava tão bem como no dia em que, quinze anos depois, processo ganho contra o Estado, indemnização no bolso e marcas no olhar, a veio visitar, lhe bateu à porta e disse obrigado.
Nem sei bem. Inacreditavelmente não sei dizer o nome.
Tinha vinte quando foi saneado de punho fechado. Mulher, três filhos, tinha pertencido à guarda fronteiriça e, como tal, não conseguia negar as ligações à PIDE. Acredita em mim. Estava-se mesmo a ver que tinha ligações à PIDE, tresandava a PIDE. Ela acreditou. Mesmo quando foi enxotado com murros no ar que não se respirava na sala cheia de gente a votar quem merecia e quem não merecia ficar, ela acreditou. Tresandava a PIDE, não mereceu ficar. Os braços erguidos gritavam para ele ir embora. E ele foi. Deixou mulher. Deixou um, dois, três filhos pequenos, para ir para a Zâmbia. Diz que o exílio foi na Zâmbia, onde continuou a trabalhar.
Ela também ficou, revoltada. Ele era bom, trabalhador, cheirava nada a PIDE, cheirava bem. Cheirava tão bem como no dia em que, quinze anos depois, processo ganho contra o Estado, indemnização no bolso e marcas no olhar, a veio visitar, lhe bateu à porta e disse obrigado.
Nem sei bem. Inacreditavelmente não sei dizer o nome.
sábado, 16 de maio de 2015
do ser.
Nunca a alheia vontade, inda que grata,
Cumpras por própria.
Manda no que fazes,
Nem de ti mesmo servo.
Ninguém te dá quem és.
Nada te mude.
Teu íntimo destino involuntário
Cumpre alto.
Sê teu filho.
Ricardo Reis
Cumpras por própria.
Manda no que fazes,
Nem de ti mesmo servo.
Ninguém te dá quem és.
Nada te mude.
Teu íntimo destino involuntário
Cumpre alto.
Sê teu filho.
Ricardo Reis
quarta-feira, 13 de maio de 2015
a rotina.
Nove e meia.
Chichi, cocó, lavar os dentes, cama. Há um ritual todas as noites quando nos deitamos. Lemos um livro, cantamos uma canção e imaginamos uma aventura em nome próprio. “Agora é a história do Henrique”, manda ele. E é assim.
Todas as noites, era uma vez um menino chamado Henrique, que vive numa casa em Odivelas. E o Henrique faz algo fantástico. Sempre. Por exemplo, come tanta sopa que fica gigante e ajuda o pai a arranjar o telhado. Ou então fica pequenino porque precisa de entrar no ralo da banheira para chegar depressa ao mar.
O Henrique conduz carros, aviões e helicópteros. Cozinha e organiza grandes festas. É amigo íntimo do Pai Natal e já saltou de um continente para o outro agarrado ao lombo de um dinossauro. Tem mãe, pai e muitos filhos.
Dez e tal e ainda aqui estamos. Luz fechada, vá. É tardíssimo. “Daqui a pouco vou lá ter, está bem?” Ficas aqui sossegadinho, mas é. Dorme.
Onze. Meia-noite.
“Quero fazer chichi.” Não precisas de me chamar para fazer chichi. Vai lá.
Uma da manhã. Duas.
“Tenho sede, dás-me água?” Está aqui o copo, não precisas de acordar a mamã. A mamã deixa aqui o copo. Não, ainda é cedo para ires para a minha cama. Fica aqui, mas é.
Três da manhã. Quatro. O que é que foi desta vez, Henrique?
“Diz-me uma coisa. A chuva… é ácida?”
Chichi, cocó, lavar os dentes, cama. Há um ritual todas as noites quando nos deitamos. Lemos um livro, cantamos uma canção e imaginamos uma aventura em nome próprio. “Agora é a história do Henrique”, manda ele. E é assim.
Todas as noites, era uma vez um menino chamado Henrique, que vive numa casa em Odivelas. E o Henrique faz algo fantástico. Sempre. Por exemplo, come tanta sopa que fica gigante e ajuda o pai a arranjar o telhado. Ou então fica pequenino porque precisa de entrar no ralo da banheira para chegar depressa ao mar.
O Henrique conduz carros, aviões e helicópteros. Cozinha e organiza grandes festas. É amigo íntimo do Pai Natal e já saltou de um continente para o outro agarrado ao lombo de um dinossauro. Tem mãe, pai e muitos filhos.
Dez e tal e ainda aqui estamos. Luz fechada, vá. É tardíssimo. “Daqui a pouco vou lá ter, está bem?” Ficas aqui sossegadinho, mas é. Dorme.
Onze. Meia-noite.
“Quero fazer chichi.” Não precisas de me chamar para fazer chichi. Vai lá.
Uma da manhã. Duas.
“Tenho sede, dás-me água?” Está aqui o copo, não precisas de acordar a mamã. A mamã deixa aqui o copo. Não, ainda é cedo para ires para a minha cama. Fica aqui, mas é.
Três da manhã. Quatro. O que é que foi desta vez, Henrique?
“Diz-me uma coisa. A chuva… é ácida?”
terça-feira, 12 de maio de 2015
domingo, 10 de maio de 2015
terça-feira, 5 de maio de 2015
o cruzamento.
não paro de tremer a pensar em ti e na tua mota. já passou tempo, já estacionei. já entrei onde fui fazer aquilo. e, apesar das paredes, e dos minutos que passam, e dos olhares que me descobrem a conter o choro na sala de espera, ainda te ouço lá fora. ainda te ouço.
falas tudo em repeat, alto. fazes-me dor de cabeça. ribombam as palavras a dizer que me partes a cara. eu sei que mereço. tenho na cara estampado o soco que não me deste por ser mulher. eu sei que sim, que mereço.
lamento que não te tenha mostrado tudo; talvez guardasses para ti uma ideia diferente das pessoas e do mundo. vejo os teus olhos, nos meus, vejo como olhaste. eu olhei o fundo dos teus olhos e vi o medo, e o ódio de quem teve a vida por um fio, e tinha família e filhos em casa a esperar. ia jurar que me olhavas, quando saíste da mota azul para me chamar assassina. que enquanto me acusavas de ser assassina me olhavas. e tive esperança, cheguei a acreditar que to conseguia contar para ires para casa com uma ideia diferente, que percebesses que a mulher assassina também estava assustada. e que a mulher assassina também tinha medo.
não era preciso teres barrado o carro com a tua mota atravessada, para eu parar e te ouvir falar. não deste conta? eu já estava petrificada. encostada. sem acreditar naqueles segundos de distração que podiam ter sido fatais, mais a tua mota, o meu carro, o outro carro que vinha da esquerda e a carrinha que te perseguia, e a família e os filhos dessa gente toda.
sim, num segundo cruzámo-nos todos, e ninguém bateu mas podia ser grave sim, ninguém se desviou mas podia ser grave.
e, depois, eu estava parada, na berma, e quiseste assegurar-te de que eu não fugia quando me viesses dar um soco. se reparares, abri o vidro para me dares um soco. e pedi desculpa. pedi desculpa. pedi desculpa. e disse-te que sim, que não havia nada que justificasse uma distração de segundos. disse-to depois de perceber que me querias bater, e tu continuavas a querer bater-me, e eu estive a centímetros de ti a querer bater-me. se calhar ainda tremo por isso.
reparaste que não me afastei? no fundo teria doído menos um soco na cara do que este murro no estômago. ao menos teria onde me agarrar.
disseste para eu pensar nisto, antes de dares um murro no carro e me deixares na tua mota. ora, não tenho feito outra coisa. tanto que no caminho até casa tremia tanto que não conseguia manter-me na minha faixa de rodagem. e vim com tanto medo a conduzir que ia batendo em dois carros no passeio. e no cruzamento, naquele, onde eu acabei sem saber se fui eu que não te vi ou tu que não me viste, fiquei a ver quem tinha prioridade, colada ao chão sem conseguir avançar.
pronto, já está. disseste para eu pensar. e não tenho feito outra coisa. espero que seja isto.
falas tudo em repeat, alto. fazes-me dor de cabeça. ribombam as palavras a dizer que me partes a cara. eu sei que mereço. tenho na cara estampado o soco que não me deste por ser mulher. eu sei que sim, que mereço.
lamento que não te tenha mostrado tudo; talvez guardasses para ti uma ideia diferente das pessoas e do mundo. vejo os teus olhos, nos meus, vejo como olhaste. eu olhei o fundo dos teus olhos e vi o medo, e o ódio de quem teve a vida por um fio, e tinha família e filhos em casa a esperar. ia jurar que me olhavas, quando saíste da mota azul para me chamar assassina. que enquanto me acusavas de ser assassina me olhavas. e tive esperança, cheguei a acreditar que to conseguia contar para ires para casa com uma ideia diferente, que percebesses que a mulher assassina também estava assustada. e que a mulher assassina também tinha medo.
não era preciso teres barrado o carro com a tua mota atravessada, para eu parar e te ouvir falar. não deste conta? eu já estava petrificada. encostada. sem acreditar naqueles segundos de distração que podiam ter sido fatais, mais a tua mota, o meu carro, o outro carro que vinha da esquerda e a carrinha que te perseguia, e a família e os filhos dessa gente toda.
sim, num segundo cruzámo-nos todos, e ninguém bateu mas podia ser grave sim, ninguém se desviou mas podia ser grave.
e, depois, eu estava parada, na berma, e quiseste assegurar-te de que eu não fugia quando me viesses dar um soco. se reparares, abri o vidro para me dares um soco. e pedi desculpa. pedi desculpa. pedi desculpa. e disse-te que sim, que não havia nada que justificasse uma distração de segundos. disse-to depois de perceber que me querias bater, e tu continuavas a querer bater-me, e eu estive a centímetros de ti a querer bater-me. se calhar ainda tremo por isso.
reparaste que não me afastei? no fundo teria doído menos um soco na cara do que este murro no estômago. ao menos teria onde me agarrar.
disseste para eu pensar nisto, antes de dares um murro no carro e me deixares na tua mota. ora, não tenho feito outra coisa. tanto que no caminho até casa tremia tanto que não conseguia manter-me na minha faixa de rodagem. e vim com tanto medo a conduzir que ia batendo em dois carros no passeio. e no cruzamento, naquele, onde eu acabei sem saber se fui eu que não te vi ou tu que não me viste, fiquei a ver quem tinha prioridade, colada ao chão sem conseguir avançar.
pronto, já está. disseste para eu pensar. e não tenho feito outra coisa. espero que seja isto.
sábado, 2 de maio de 2015
generation gap.
Eu sou o médico e tu estás doente. Deita-te aí. Então o que é que se passa, senhora? Ah, deixa ver. Tens uma otite nas pernas. Precisas de uma pica. Vais ser corajosa, está bem? Não custa nada. Já está. Agora vou ter de operar. À barriga. Vira-te para cima. Está bem, pode ser aí de lado. Mostra o umbigo, posso ver? Vou abrir um buraco com este lápis, está bem? Não custa nada. Ah: primeiro vou ter de te matar. Respira aqui a anestesia. Respira fundo. Três vezes. Uma. Duas. Três. Já está. Agora já operei. Mãe, já está. Mãe, já está! Acorda! Uh-uh. Ah. A anestesia, já percebi. Agora vou medir-te a febre. Já está. Deixa ver. Tens noventa quilos de febre. Estás-te a rir porquê? Já acabou a consulta. O número de contribuinte, por favor? Dois zero nove, seis oito cinco, pronto. Já está. Aqui está a fatura, senhora. Sabias que eu sou o teu filho? A sério, a fingir que eu sou o teu filho e tu tens noventa anos. Estás contente? Sim, sou médico. Estás contente? Então a minha casa é a tua! Estive a viver contigo! Tenho 40 anos. Então agora ficas aí deitada? Mâe! Levanta-te! Mã-ãe!
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