sábado, 23 de maio de 2015

da dor.

Não é preciso haver sinais a avisar-nos de que chegámos ao topo. E ainda assim deixamos de erguer a perna e paramos de subir. Quer dizer, temos dias. Quem nunca alçou a canela sem ter escada para trepar?

Não há nada que nos impeça de comer mais uma cereja, e mais uma e mais uma. E paramos, porque mais são demais. E faz doer a barriga.

Quando discutimos e queremos ir ao fundo, ninguém se levanta enquanto não tivermos uma conclusão, ninguém sai daqui enquanto não souber quem fez isto. Mas lá chega a altura em que paramos e mudamos de assunto. Em que saímos para ir fazer um chichi, vou ali à casa de banho. Em que temos só de preparar qualquer coisa para comer, não ligas ao teu irmão? E depois, sem querer, sem sinal nenhum para nos fazer mudar, não conseguimos o mesmo semblante, onde o pus? Voltamos com outra cara. E se mandamos uma trouxada no móvel quando passamos ainda temos desculpa para a cara má, ui magoaste-te?, mas quando vamos direitos à porta da sala já não sabemos do queixume. Onde o pus, onde íamos? Ui, magoaste-te? Já não sabemos qual o queixume.

Face a uma ferida, a um penso, a uma crosta que sara, a uns pontos a repuxar, ninguém pergunta se pode tocar, ninguém chega nem perto. Parece que até o ar pode magoar. Olha-se de longe, de cima, para não incomodar demasiado. Fico aqui sentada a olhar para ti, estás com bom aspeto. Parece sequinha a ferida, vê-se daqui de cima que está sequinha. Não há redomas a barrar o acesso, e ninguém ousa aproximar-se para não magoar. Dói-te? Mais vale não mexer, está quase boa. Vê-se daqui, vejo bem daqui aí em baixo, não é preciso tocar.

Não temos de ir trabalhar, não vamos dar de comer a ninguém, não há compromissos, tratam dos nossos por nós. E mesmo assim saímos da cama, por muito que pareçamos centenários a virar-nos de lado e a agarrar a barriga, saímos da cama. E banho dentes pentear voltar a deitar. Não há um despertador que nos diga que chegou a hora de levantar. Não há quem nos veja, fotografe, quem escreva sobre nós, para nos obrigar a tratar-nos. E mesmo assim fazemo-lo. E, ainda que estejamos sozinhos, perguntamo-nos se nos dói. Ora deixa cá ver como eu estou hoje. E vamos melhorando. Ninguém precisa de perguntar como estamos e vamo-nos tratando e melhorando.

E as pequenas vitórias, como hoje já dormiste de lado ou vês tão rápido que te levantas, mostram que já quase não dói. Continuamos a ter limites e não queremos sinais que nos imponham os limites (tarda nada deixará de doer, tens de ter cuidado quando deixar de doer). E precisamos de saber quando parar de subir as escadas, quando não comer mais cerejas, quando não tocar. Vais proteger-te quando deixar de doer. E, mesmo que nos apeteça fechar os olhos e ter pena de nós próprios, temos de continuar a tratar-nos. Erguemo-nos e levantamo-nos, mais ou menos chochos, com muita ou pouca vontade de ver gente, mas erguemo-nos e levantamo-nos. Sempre com a consciência das feridas que estão por sarar. Se eu tocar aqui, dói-te?

Fina. Pronta pra outra.

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