não paro de tremer a pensar em ti e na tua mota. já passou tempo, já estacionei. já entrei onde fui fazer aquilo. e, apesar das paredes, e dos minutos que passam, e dos olhares que me descobrem a conter o choro na sala de espera, ainda te ouço lá fora. ainda te ouço.
falas tudo em repeat, alto. fazes-me dor de cabeça. ribombam as palavras a dizer que me partes a cara. eu sei que mereço. tenho na cara estampado o soco que não me deste por ser mulher. eu sei que sim, que mereço.
lamento que não te tenha mostrado tudo; talvez guardasses para ti uma ideia diferente das pessoas e do mundo. vejo os teus olhos, nos meus, vejo como olhaste. eu olhei o fundo dos teus olhos e vi o medo, e o ódio de quem teve a vida por um fio, e tinha família e filhos em casa a esperar. ia jurar que me olhavas, quando saíste da mota azul para me chamar assassina. que enquanto me acusavas de ser assassina me olhavas. e tive esperança, cheguei a acreditar que to conseguia contar para ires para casa com uma ideia diferente, que percebesses que a mulher assassina também estava assustada. e que a mulher assassina também tinha medo.
não era preciso teres barrado o carro com a tua mota atravessada, para eu parar e te ouvir falar. não deste conta? eu já estava petrificada. encostada. sem acreditar naqueles segundos de distração que podiam ter sido fatais, mais a tua mota, o meu carro, o outro carro que vinha da esquerda e a carrinha que te perseguia, e a família e os filhos dessa gente toda.
sim, num segundo cruzámo-nos todos, e ninguém bateu mas podia ser grave sim, ninguém se desviou mas podia ser grave.
e, depois, eu estava parada, na berma, e quiseste assegurar-te de que eu não fugia quando me viesses dar um soco. se reparares, abri o vidro para me dares um soco. e pedi desculpa. pedi desculpa. pedi desculpa. e disse-te que sim, que não havia nada que justificasse uma distração de segundos. disse-to depois de perceber que me querias bater, e tu continuavas a querer bater-me, e eu estive a centímetros de ti a querer bater-me. se calhar ainda tremo por isso.
reparaste que não me afastei? no fundo teria doído menos um soco na cara do que este murro no estômago. ao menos teria onde me agarrar.
disseste para eu pensar nisto, antes de dares um murro no carro e me deixares na tua mota. ora, não tenho feito outra coisa. tanto que no caminho até casa tremia tanto que não conseguia manter-me na minha faixa de rodagem. e vim com tanto medo a conduzir que ia batendo em dois carros no passeio. e no cruzamento, naquele, onde eu acabei sem saber se fui eu que não te vi ou tu que não me viste, fiquei a ver quem tinha prioridade, colada ao chão sem conseguir avançar.
pronto, já está. disseste para eu pensar. e não tenho feito outra coisa. espero que seja isto.
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