sábado, 31 de janeiro de 2015

a alavanca.

Não te vou ensinar. Não sabes no que te estás a meter. E mesmo que quisesse ensinar-te não conseguiria.

Disseste que gostavas de saber fazer como eu. Mesmo depois de eu explicar que não é uma coisa assim tão boa, que não a controlo, disseste-me que gostavas de saber fazer como eu. Não te ensino não, desculpa.

Era pequenina e já a professora de inglês me dizia que aquilo me traía. Sempre que eu não percebia a matéria, que discordava, que estranhava, sem perceber como erguia a sobrancelha, assim um V invertido, assim só uma, um chapéu de chinesinho lipopó sobre o olho direito. E aí, ela dizia, Não percebeste, pois não?, e lá eu me encolhia. Grande, encolhia-me.

Farfalhudas, as sobrancelhas foram perdendo pelos à força da pinça e das modas, mas o meu V foi-se intensificando. É como as rugas: não pedi para se notarem mais. Agora quero esticar a testa e isto não vai lá. Esta manhã reparei que estou a ficar com uma ruga das fundas na cana do nariz. Assim, como o José Mayer, o Osnar da Tieta do Agreste, hoje descobri esta coisa enrodilhada assim.

Tu também não gostarias de ter este V. Acredita que te protejo se não to ensinar. E já me protegeste tantas vezes que isto é o mínimo que posso fazer. O meu V invertido trai-me. Mesmo quando digo que sim, plena de compreensão, está lá o V a dizer que não, que não percebi nada.

Lembras-te quando te conheci? Não, lembras-te quando te encontrei anos depois de te conhecer e de te falar? Fomos tomar um café, ao Túnel, eu ia para a mesma universidade que tu, queria proteção, e tu deste-me proteção. Lembras-te?

O mínimo que podia fazer é explicar-te como se ergue a sobrancelha para te agradecer pela ajuda que me deste e que me dás. Mas, acredita, não sei como se faz. E mesmo que soubesse não é uma coisa boa. E só quero coisas boas para ti.

Com a falta de ideias para prendas de aniversário, podia pensar em dar-te a fórmula mágica, Aqui está a maneira como se ergue uma sobrancelha só, e ficavas contente, e ficava-me barato. Mas não, mereces mais. Verdade é que mereces tanto que não sei o que te posso dar.  

O meu V invertido sobre o olho direito tem a discrição de um ponto de interrogação na testa. E mesmo assim disseste que gostavas de saber fazer como eu.

Há anos muito difíceis. E tu foste sempre lá abaixo buscar-me. E eu agora estou tão diferente! Esta manhã, por exemplo, acordei o mais velho a saltar para cima da cama. Fiquei em cima dele e, depois, disse-lhe que queria testar a musculatura. Vê lá se consegues levantar a tua mãe assim. Ele respondeu-me: Sabes, mãe, o corpo humano é uma alavanca. Se nos faltar um ponto de apoio, não nos conseguimos levantar.


Obrigada por teres sido o meu.
Feliz aniversário.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

a cobra.

Se me citarem e não for verdade, lamento: limito-me a recontar. 

Consta que o Dom Dinis malandreco gostava de dar uns passeios junto das freiras do convento de Odivelas. Ao que parece, Isabel, a querer certificar-se da razão das escapadelas do rei, tê-lo-á seguido até ao topo do monte, onde ficou a aguardar o regresso. O rei, ao ver a rainha com os seus archotes, ter-lhe-á perguntado o que fazia ali. E, com ar de santa, ela terá dito: “Eu? Estou aqui para vos alumiar.”

Tudo para vos contar onde estou: no Lumiar. Passei a infância a ver na televisão os programas da RTP transmitidos daqui. Trinta anos passaram, e volta e meia venho cá parar.

Há uma cobra desfeita no meio da Alameda das Linhas de Torres. Que-nojo. Espero o homem verde e nem consigo olhar bem. Uma cobra tão gorda, tão grande, no meio da cidade. Trilhada pelos carros que passam, com as tripas de fora como gato atropelado na estrada. Nojo. Tão grande, é uma jiboia (aquilo é uma jiboia, não é?). Nojo, nojo. Nunca vi uma coisa assim, nunca imaginei ter um réptil tamanho no meio da cidade, ali a dois passos da roulotte das farturas que anuncia “Temos multibanco”, ali ao lado dos agarrados, donos dos lugares onde cabem dois carros.

Nojo, tanto nojo. O semáforo fica verde e eu até olho de lado. Está com os trilhos das rodas que passam marcados. Uma cobra tamanha no meio da cidade. Não estamos na aldeia, terá vindo de um circo. Nojo. Tenho os pelos em pé até onde já não tenho pelos. Odeio tanto, odeio cobras. Estou a atravessar. O semáforo está verde. Nem quero olhar.

Ah. Parecia mesmo uma cobra. Está bem. Também quem é que deixa um cachecol no meio da estrada?

- Estou? Boa tarde. Queria marcar uma consulta de oftalmologia, por favor.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

da rejeição.

Foi engano. Aquele convite não é para ti. Devolve. Quero dar ao outro. A minha mãe enganou-se. Afinal não quero que vás. Tem o teu nome mas não é para ti. Que importa que ficaste contente, não gosto de ti. Mal conseguias dormir com a excitação, mas não quero saber. Esperaste a tua mãe só para lhe dizer Olha, ela convidou-me. E afinal não. O nome é o mesmo mas o apelido é outro. Não gosto de ti. Não te quero lá. Quero o outro que tem o teu nome e o apelido diferente. O convite é para ele.

Não era para mim mas posso ir na mesma. Não faz mal se for na mesma, pois não?

Nem pensar. Sábado vamos andar de bicicleta.

E se calhar podemos deitar o convite fora, não é?

Talvez possamos fazer melhor.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

o talho.

Tenho um coração enorme. Aí o dobro do tamanho dos corações dos porcos, assim. Vi-o numa das primeiras dissecações e não conseguia tirar os olhos. Fartamo-nos de observar fotos e esquemas e filmes com corações e nunca estamos à espera de que seja tão grande.

Tinham-me avisado do cheiro. Sou ousado, queria ver a que cheirava um morto depois de estar numa banheira de formol. Comecei com nariz tapado, de máscara; depois destapei. O professor explicava com o bisturi como se esventrava o morto. Cheirava a presunto, não a formol. E o morto já estava esventrado, devia ter havido uma aula antes, mas mesmo assim ele explicava, para nós sabermos como se chegava ao coração. Eu não conseguia focar as palavras. Só pensava: o coração do morto cheira a presunto. O corpo é dissecado, aberto, afastam-se as costelas, e espreita-se. E é nessa altura que se percebe o tamanho do coração dos homens. Tão grande. Não estamos preparados para termos cá dentro uma coisa assim.

Hoje fui ao talho e não me reconheceram. Ui, meu deus, como tu estás. Não estou de forma nenhuma, não percebo. Tenho um coração grande. É porque estou velho, ou não, tudo me preocupa. Quase choro quando me vejo nas fotos. Não, aí não sou eu. Não me sinto nada com essa imagem. Não estou velhinho. Não estou. Olha para esta. Esta sim. Tinha uns sete anos. Estava na praia com os meus irmãos. É na Fonte da Telha. Sabes quem são? Já na altura era o mais velho. Mais velho mas não o velho, bem entendido. Eles também têm um coração grande. E estão a ficar grisalhos, como eu. Aqui éramos gordinhos. Eu não, sempre fui magro, pois. Nota-se bem que era eu, não? Vê-se logo. Com mais rugas. Sim, um pouco mais magro. Mas mantenho o ar de miúdo. Bem, talvez: ninguém tem ar de miúdo aos quarenta e tal. Eles também não estão iguais. Já te mostrei os meus filhos?

Pareço velho por causa da barba grisalha, é isso. Mas o cabelo espetado é o do meu pequenito. Sim, está aqui está no liceu. Não, namoradas não tem. Mas mostra cá uma garra... E, depois, já deixei de rir do que não me faz rir, já não faço o frete. E se não me apetece mostrar os dentes, não mostro, mesmo que seja para a foto. 

Estou mais magro, está bem, mas estou em forma! Se calhar era isso que queriam dizer no talho: já não me reconhecem, porque estou em forma. Ui, como tu estás (tão em forma)! É isso.

Além do mais há a história do coração. Enorme. Sei que tenho um coração enorme. Deve ser por isso. Até faz impressão, por ser tão grande. São precisas duas mãos para o agarrar.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

viver.

Te olho nos olhos e você reclama
que te olho muito profundamente.

Desculpa.
Tudo que vivi foi profundamente.
Eu te ensinei quem sou
e você foi-me tirando
os espaços entre os abraços.
Guarda-me apenas uma fresta.

Eu, que sempre fui livre,
não importava o que os outros dissessem.
Até onde posso ir para te resgatar?
Reclama de mim, como se houvesse a possibilidade
de me inventar de novo.

Desculpa... se te olho profundamente,
rente à pele,
a ponto de ver seus ancestrais
nos seus traços.
A ponto de ver a estrada
muito antes dos seus passos.

Eu não vou separar as minhas vitórias
dos meus fracassos,
eu não vou renunciar a mim,
nenhuma parte, nenhum pedaço do meu ser,
vibrante, errante, sujo, livre, quente.


Eu quero estar viva e permanecer
te olhando profundamente.

Ana Carolina
(obrigada, Laís)

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

o encontro.

Abre a porta a ver se ele vem.
Procura a ver se encontras.
Liga a ver se dá.
Mais a ver se chega.
Prova a ver se pica.
Come a ver se engordas.
Abre a ver se tens.
Cheira a ver se gostas.
Vem a ver se eu deixo.
Assim a ver se podes.
Experimenta a ver se dói.
Tenta a ver se serve.
Toma a ver se vestes.
Espreita a ver se chove.

Sai daí a ver se ele volta.
Pega a ver se ele volta.
Olha a ver se ele volta.

Tu vê lá quem falta.
Tu vê lá se cais.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

o aquecimento global

Quando andava na primária, Portugal continental tinha só onze rios. E eu, que gozava de boa memória, decorava o número da conta bancária e as matrículas dos carros que os meus pais tinham tido, sabia o nome deles todos: Minho, Lima, Cávado, Ave, Douro, Vouga, Mondego, Tejo, Sado, Mira e Guadiana. A sério. Eu sabia-os a todos. De mão dada com a Dorinha, decorei os seus nomes a caminho do colégio quando já éramos grandes o suficiente para irmos sozinhas e pequenas q.b. para chegarmos lá a pinchar.

Uns anos antes, de manhã, era a avozinha que passava e nos levava, a mim e ao meu irmão, de bata bege vestida, que era assim a nossa farda. Na mochila, tínhamos o lanche, protegido nuns envelopes de tecido bordados ou de renda que a mãe guardava na cozinha ao pé dos guardanapos de pano que usávamos às refeições. O meu irmão não gostava de tulicreme; eu não gostava da marmelada da avó, que ficava rija quando secava. Lembro-me de um dia ter havido uma troca de lanches. Quando cheguei ao recreio, vi que tinha a sandes de marmelada. Não gostava, mas sempre fui de bom estômago, e deus me livre de ficar com fome: nem pensei duas vezes e comi-a. Levava as dentadas a meio quando vi o meu irmão vir ao longe, do recreio de cima, com o saquinho e um pão com tulicreme nas mãos…

Adiante: à tarde, era o avô a ir-nos buscar para almoçarmos. No regresso da escola, por trás da Sé, passávamos pelo senhor Fernandes, o simpático dono de uma drogaria que, tal como o avô, cheirava a Old Spice e trazia um pente no bolso de trás das calças, com que alisava o cabelo castanho. Nessa loja, onde sempre fazíamos uma paragem, estava no edifício onde em tempos tinha trabalhado o doutor Fráguas, um dentista com a má fama de fazer tratamentos dentários sem anestesia. Passávamos a Gráfica, mais os seus livros e os seus santinhos, e, no fundo da avenida de baixo, o telefone rouco que gritava aos taxistas. Era lá que se situava a única paragem de táxis da cidade, e era lá que dávamos mais dois dedos de conversa com os amigos do avô, ele que cumprimentava toda a gente por quem passava erguendo ligeiramente o chapéu.

O avô trabalhava na CHENOP, a Companhia Hidroeléctrica do Norte de Portugal. Era eletricista; além disso, engenhocas. Tinha uma sala de arrumos onde passava tardes inteiras a engenhocar (é comum na família o hábito de ir para a garagem, para o sótão ou para a arrecadação tratar de coisas, tanto que se não souberem de mim devem experimentar procurar nos tetos falsos, ao pé da árvore de Natal). Não sabia cozinhar, nem queria saber, não se levantava para pôr a mesa, para arrumar a cozinha, não sabia tratar da roupa. Mas era mesmo assim: outra época, outra mentalidade. Nem a avó deixava que fosse de outra maneira. Chegava ao fim da refeição e puxava do seu português suave enquanto dizia “Queres mais? Vê lá: não vás dizer como disseste da outra vez.” Claro que nunca tinha havido vez nenhuma em que tivéssemos dito nada que não fosse elogioso para aquela avó que cozinhava e que nos creditava a barriga com quantidades generosas de doces, rissóis e laranjada…

Falando em comidas, o meu pai conta como, quando era pequeno, existia um explicador que advertia os estudantes de que “se não estudendes não comendes” (ou “se não comendes não estudentes”, já não sei bem). Costumamos repeti-lo em família, para nos rirmos um pouco e incentivar uma segunda rodada do cabrito, mas a fórmula não funciona bem na boca da malta sentada à mesa no nosso século. Do mesmo modo, independentemente do número de esferográficas que já comprei em toda a vida, nunca consegui reproduzir o piar do bico fino com que a freira do colégio desenhava no bloco de recibos o meu nome e o que o meu pai pagava para me ter a estudar lá.

Nos almoços de antigos alunos, nas reuniões de ex-amigos, nos jantares de curso, são reproduzidas expressões que nos ficaram gravadas doutros tempos. Em noventa e nove vírgula nove por cento das vezes fecha-se a conversa com um silêncio, durante o qual tentamos escutar na nossa cabeça aquela voz, as mesmas palavras, vindas da boca dos próprios, que já morreram, ou que já não andam por cá. Não sabemos contar; não soa bem, faltam-nos quem falou, o som. Parece que não foi bem assim quando se diz alto. Parece mentira.

Também se explicar a outra pessoa que havia só onze rios em Portugal pelos meus dez anos, ninguém acredita. Mas eu dizia à boca-cheia que os sabia a todos. E depois repetia: Minho, Lima, Cávado, Ave, Douro, Vouga, Mondego, Tejo, Sado, Mira e Guadiana.

Agora há mais umas centenas. Isto das alterações climáticas é tramado.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

coisas que acontecem.

Há um assobio que acompanha o piano ao descer. Só fazes merda. Tudo acontece em câmara lenta nestes filmes. Ontem foi o telemóvel, hoje é a porcaria da porta. Não é todos os dias que cai um objecto com este valor de uma janela. Rais parta a gaja. Tudo acontece em segundos. Leva-me daqui o miúdo. Mas há segundos, como estes, que duram uma eternidade. Tenho de estar sempre cá, rais parta. Vendo de fora, dá para perceber como se inclina com o atrito do ar. A chave está ao contrário, é sempre a mesma merda. Porque cairá um piano numa zona tão antiga? Estou sempre a resolver os teus problemas. Quem atirará um piano da janela? E onde deixaste a merda do telefone? É uma pena de facto, deve ser caro. Não tens bateria porquê? É mesmo uma pena. Vês, já parti a merda da chave. Pum!

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

o peixinho.

Quem meus filhos beija minha boca adoça. Não há nada melhor do que me meterem os miúdos com um sorriso, felizes, às gargalhadas. É uma pessoa? Apetece-me adotá-la. É um filme? O leitor de DVD até deita fumo. É um livro? Não o arrumamos, fica no chão ao lado da cama, vai connosco para a casa de banho (sim, cá em casa lemos livros que nos fazem rir enquanto fazemos cocó).

Funciona assim com tudo, e é a consciência de como as coisas podem ser trabalhadas que nos faz sair do poço. As fotos ficam mais giras quando sorrimos, as histórias sabem melhor quando nos rimos, tudo se encaminha para um bom-porto se pensarmos positivo e nos rodearmos de pessoas positivas. Há que fazer a experiência: naquelas fases da montanha-russa em que a descida parece não terminar, olhemos à volta e vejamos quem e o que nos rodeia. Depois, invertamos a curva.

Anda tudo a chorar à nossa volta? Imponhamo-nos o objectivo de as fazer felizes. Parece que só acontecem desgraças connosco, com quem está connosco e no mundo, e ainda por cima não para de chover e temos uma borbulha no nariz? Paguemos dez euros ao vendedor da CAIS e bebamos um chocolate quente enquanto escrevemos num moleskine as coisas mais boas que temos (é mesmo assim, as mais boas escrevem-se por oposição às menos boas).

Banda desenhada é do melhor para mim. O meu mais velho gosta de ver um bom sketch cómico. O pequenino adora quase tudo desde que tenha patetices, planetas ou que fale de amor (é um manteiga-mole). Ultimamente, está fã de livros das letras. Têm o A de águia, o B de burro, mas também o S de cobra e o J de crocodilo. Quando não lhe apetece ler, podemos por exemplo jogar às cartas. “Jogamos aqui os dois. Mas também ganhas sempre... Posso ser da tua equipa?” Oh yes, a ver se ganhamos esta.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

charlie.

Sois um homem ou sois um rato? Homem que é homem não prende o cabelo com mola. A barriga faz-vos calor? Mas está frio. Já não tendes posição, já não sabeis como bordar a coisa ao miúdo. Homem que é homem não borda, não tricota; senta-se no sofá e lê o jornal. Ui, e jornais eruditos, sem bonecos. Não há cá quadrinhos com cartoons para homem que é homem. Fareis a barba hoje, antes de dormir? Talvez a deixeis para amanhã. Sabeis da vossa liberdade de optar; realizar hoje, fazer depois.

Trinta e oito semanas e a cria ainda não é para já. Mesmo os homens quando engravidam precisam de esperar até às quarenta. Os bonecos só ficam prontos ao fim de nove meses, antes disso sofrem. Ireis preparar o vosso filho para ele estar pronto. E será o primeiro a sair da barriga do homem. Ui, que os homens não ficam grávidos. Ou ficam.

Nunca pensastes engravidar. A vida é assim mesmo, troca-nos as voltas. Sabeis as voltas que a vida dá? Avançai sem medo, com estrias nos flancos, com as saias a deixarem de servir ao homem. Homem que é homem engravida e tem de comprar saias novas porque as antigas deixaram de servir. Ui, um homem a usar saias.

Sois educador de infância. Ou esteticista, por exemplo. Não há homens com estas profissões. Ou há? Ui, o trabalho que dá explicar o porquê disto. Sabeis que os miúdos perguntam? Os miúdos não percebem porque não há homens nas salas da escola, e perguntam tanta coisa que não compreendem e que não sabemos explicar. Como os senhores da televisão que fizeram desenhos de que os outros não gostaram. E pum! Ui, como explicar que houve tiros por causa de desenhos.

Tendes de aprender a troçar e a ser gozados, a aceitar a crítica e a sátira, a ter dois sentidos para a mesma palavra. Sabeis rir de vós e dos outros? Ui.

Pensai assim. Ousai publicitá-lo. Fazei sem medo. E quando vos for perguntado o que levais no regaço, respondei diferente. São lápis, senhor.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

L&M lights.

Vinte. Vezes trezentos e sessenta e cinco. Sete mil e trezentos. Mais meio ano. Três mil seiscentos e cinquenta. Agora junto o ano. Onze mil. A dividir por vinte. Quinhentos e cinquenta.

As minhas desculpas por ser chata. Não que ache isto chato. É outra coisa.

Chato é uma borbulha no nariz, o verniz saltar no dia da festa ou fugir-nos a boca para a verdade. Chato é ouvir a história chata, é ler um livro chato, é tê-lo sempre a implicar. Chato é contar, enganar-se e ter de contar de novo, é torcer o pé e partir o salto, é deixar ver a barriga, é ficar mal na única foto.

Ter cancro do pulmão é outra coisa. Muito mais do que chato. Não digo que não me falte nada, que os vícios são mesmo assim.

Alda: limpa há quinhentos e cinquenta maços. Mais coisa menos coisa.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

klimt.

Os olhos dela estão fechados e eles dão um beijo. Cabeças a setenta e cinco graus, sem mãos, sem movimento, nada mexe de facto além das pessoas que, como eu, estão com pressa para fazer rodar a cancela, e sair, e comprar o passe. Parados. Ele e ela parados, presos por aqueles lábios estáticos, sem o conforto das mãos nos cabelos, sem o calor do toque do corpo de um contra o corpo do outro. Só lábios. Cabeças inclinadas. Olhos fechados. 

Pergunto que prazer virá de um beijo assim, demorado. O que sentem? O que os faz não se tocarem? O que saberão um do outro? Quanto durará para eles aquela eternidade? Ele estará feliz? E ela? Está na fila? A senhora está na fila?

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

o registo.

O Gigio era um bom canalizador, e ela simpatizava com ele. Da primeira vez que o viu, achou que ele tinha os dentes podres. Depois semicerrou os olhos e reparou que as cáries eram caninos e incisivos de ouro, aliados ao seu preconceito. Ele e o senhor Peixe, que tinha cara de peixe e olhos de peixe, chamavam-na patroa. A patroa quer assim ou assado? Ó patroa, temos aqui um problema; esta parede não pode vir abaixo… Quando os deixava a partir azulejo, a pintar, a levantar tacos ou a fazer a instalação elétrica, dias havia em que ficava com a impressão de que bastava transpor a soleira da porta para passar de patroa a gaja (esta gaja quer tomadas em cada esquina, p*** que pariu tanta tomada), mas normalmente eles eram simpáticos e ela era a patroa. E regra geral eles gostavam dela.

Quando conduzia distraída e distraída entrava na rotunda sem dar passagem, mesmo quando estava segura de que não abusara do blush e de que a batata vermelha tinha ficado no quarto do miúdo, tinha a certeza de que a chamavam palhaça. E com razão: ela odiava conduzir, tal como não gostava de cozinhar. Fazia-o por pura obrigação e sempre que podia fugia. Aliás, tão facilmente queimava o estrugido como o asfalto; a diferença é que não era a speedar, mas a torcer o volante para não se despistar. E, sempre com grande desinteresse, era capaz de ficar a costurar enquanto o leite vasava, vasava, vasava, com o mesmo à-vontade com que se maquilhava no semáforo (o que é que foi? esqueci-me aqui do eye-liner...).

Na intimidade, chamavam-lhe muita coisa, dependendo da palavra "F": se estava fofinha, era uma querida; se estava furiosa, nem vos conto. Na lavandaria da frente, quando ia lá deixar o fato do mais velho, trazia o talão onde dizia "Vizinha. PAGO". O senhor do segundo esquerdo, que tocava a avisar das chaves na porta, chamava-a vizinha da frente. Para os polícias da esquadra, no fundo da rua, era a destrambelhada-que-só-quando-lhe-acenamos-acende-os-faróis. No cabeleireiro, a Beta e a Cristina chamavam-na minina, giraça ou lindona. Na creche, para todos, lá vinha a mãe do Henrique; tal como em Espanha quem viajava era a mãe do João, e mãe do João era a mulher de roupão cor-de-rosa que aparecia à varanda com ar de sono a pedir desculpa a quem estivesse fora da carrinha do senhor Pisco, a dizer que ele já vai, já-já, e que tinha na testa escrito "culpada" por ele estar atrasado. Para o irmão, sempre foi irmã. Em Lamego, todos a conheciam por Aldinha. As amigas chamavam-lhe querida, minha linda ou Aldita.

E depois o João chamava-a só mãe. Quando queria alguma coisa, pisava o risco ou a sentia moribunda (ela morria de saudades, sabiam?), soltava um mãezinha-isto, mãezinha-aquilo. Para o Henrique, era mamã, mamã-linda e meu amor. Quando ele vinha de casa do pai, de quando em vez passava a papá. Depois de uma temporada no Cacém, em Castelo Branco, no Sobral ou em Lamego, virava avó. Quando ele saía da creche, tantas e tantas vezes mudava de nome para Rosa, Soraia, Elsa ou Cristina. Às vezes, em resposta ao "Bom dia, piruças", surgia um "Bom dia, Periquita".

Em suma, o nome próprio servia para pouco mais do que para os pais, o irmão mais novo, e o destinatário das contas para pagar. Até as cartas do Círculo de Leitores que recebia gritavam PARABÉNS, Sra. MOTA! GANHOU UM TELEVISOR! Alda era, então, uma raridade, apesar de se usar, como lhe explicou a mãe quando, na adolescência ela se questionava porque não podia ser Ana, ou Catarina, ou Maria, ou Alexandra, ou Margarida como toda a gente, quando as Aldas da idade dela estavam todas escondidas num bunker. Hoje (chiu, venham cá, para ninguém nos ouvir) ela até gosta, e por vezes goza com a sorte, de ter um nome principal esquisito (não-não, Alda não leva agá) e tantas alcunhas para desenjoar.

Não é difícil simpatizar com ela, a menos que se leiam os emails que envia. Dizem (eu não sei, só escrevo o que se diz) que nas cartas e nos mails é mais fria, quase formal, ríspida até. Com a mania de corrigir tudo e aquela pontuação desenfreada, picuiiinhas que só deus sabe, só apetece apagá-la ou pô-la no spam. Mas quando se olha para ela, gengivas grandes e dentes de cavalo a sair da boca para fora, é impossível não duvidar de que se calhar a despassarada da mulher até tem coração.

E tem. Mas tem má memória também. E não sabe ficar calada.

Quando as obras terminaram, apanhou o Gigio e o senhor Peixe a tirar fotos do trabalho finalizado. Deixem lá isso: depois, quando estiver tudo mobilado, vêm cá beber uma jola e tiram as fotos a tudo bonitinho. Oh, patroa: não temos essa sorte. Nunca tivemos. E então ela, que sempre gostou de se meter em alhadas, prometeu que sim. Prometido. Está prometido. Um dia chamá-los-ia. E parto do princípio de que seria por recado mandado para a empresa ou por telemóvel; não por telepatia. E aí ela chamá-los-ia pelo nome e eles marcariam o dia com a patroa. Até hoje.

Claro que não se pode confiar nesta gaja.

domingo, 4 de janeiro de 2015

o calor.

Está aqui uma bolha e dói. Mesmo com água fria, dói. Não gosto. Tira isto. Dói muito.

Porque não me protegeste? Porque me deixaste tocar lá? Porque não evitaste que me queimasse?

Como assim um dói-doizito? Como assim meio centímetro? Dói tanto que me deste um Ben-u-ron. E agora estou contigo e estás a dar beijinhos enquanto eu choro e choro e choro e transpiro, transpiro, transpiro. Dói tanto. E doía, mesmo com o dedo esticado em baixo da torneira da casa de banho a correr, mesmo com pomada, mesmo com a torneira da casa de banho a correr, com a pomada, com a torneira da casa de banho, pomada, banho, pomada, banho.

Não posso comer. Não consigo segurar a colher, tens de dar à boca. É o indicador, já não posso fazer desenhos. Amanhã tenho de dizer à Elsa que não posso fazer desenhos. Onde é que ele está? Onde é que tenho o dói-dói? Mamã, onde é que eu tenho aquilo?

Ah, está aqui. Não compreendo, a sério que não compreendo, porque é que não deitamos o ferro fora.

toda a verdade.

Vais fazer seis anos no dia seis. Sabes, a mãe também casou os anos quando fez trinta anos no dia trinta, percebes? O mano é só quando fizer vinte e quatro. Agora és tu: vais casar os anos. “A sério que vou casar?!” Não, filho. Não podes acreditar em tudo o que te digo. Há coisas que dizemos que não são bem aquilo que dizemos. E não é assim tão grave que estejamos a mentir. Não podemos ser sempre literais.

Por exemplo, gostas de me pentear. Na última festa da tua escola fizeste-me tranças. Eu não me importo, mas aquilo não é bem pentear, filho. Dizes que estás a pentear-me, eu digo que me estás a pentear, mas no fundo não é bem isso. Percebes? Até porque vai-se a ver e estou despenteada. E não deixo de gostar de ti por não fazeres exactamente aquilo que dizes que fazes.

Outro exemplo: adoras o meu colo. E eu também adoro dar-te colo. Mas quando estou num casamento com um vestido de cetim preferia que estivesses no chão, e não no colo. E naquelas alturas pode ser chato, mas a verdade é que preferia que não me enrodilhasses, percebes? Preferia dar-te a mão, manter-te no chão, é chato que queiras vir para cima de mim, e preferia que fosse o mano a dar-te o tal colo.

Também quando ponho na cabeça a coroa feita com folhas e pauzinhos, não acho que aquilo fique propriamente bem, apesar de dizer que sim. E digo, olha tão giro que fica, fica sim senhor, mas sei que o meu cabelo está ridículo, sei que faço figura de ursa. Adoro dar palmadinhas na boca para sair um u-u-u-u-u-u-u-u de índios a sério, mas não iria com a coroa de folhas para o trabalho. É como os colares de massinhas. Gosto que os faças, mas também não os levaria para o trabalho.

E sei que adoras cozinhar. E sei que usas o meu fogão, o descasca-cenouras e uma ou outra faca. Mas, repara, não cozinhas bem sozinho, ou cortavas-te todo! Quando me perguntas se a faca é mesmo “perigosa”, e eu te digo que sim, bem, no fundo estou a mentir; ela não é perigosa. Se fosse perigosa não ta dava, percebes? É como quando brincamos aos médicos e te digo que me dói a barriga. Não me dói nada de facto. Porque, quando dói, vou buscar um copo de água e tomo um ben-u-ron. Já quando tu nasceste doeu muito, não foi assim tão fácil, nem tão simples como te disse. Tive de fazer muita força e achei que não ia conseguir. Há uma altura em que achamos que vamos morrer. Sabes quando te digo que consegues tudo, claro que consegues, só precisas de tentar? Bem, não é bem assim, não se consegue tudo, sabes? Nem sempre se consegue tudo e muitas vezes sabemos que não vamos conseguir e dizemos que sim, que conseguimos. Também vais ter de dizer isso aos teus filhos, um dia. Um dia vais ter de lhes dizer que está tudo bem, mesmo se eles não conseguirem. E saberás que não estará tudo bem. E não, o Urso não é bem teu filho.

Sabes quando lavas o chão, quando varres, quando aspiras, quando limpas o pó, quando passas a ferro? Eu gosto que o faças, juro que sim, gosto de te ver a bulir, gosto de te educar assim. Mas às vezes dava mais jeito que ficasses sossegado no teu quarto a fazer legos. É que digo que me estás a ajudar, mas muitas vezes desajudas muito, compreendes? E bem sei que adoras escolher as coisas para nós. Mas ainda tens de refinar o teu gosto. Sabes o que é refinar? Aquela porta que ficou com aqueles papéis colados foi decorada por ti, com uma tesoura e um catálogo da Abreu. Dei-te corda a dizer que estava a ficar muito lindo, mas depois tentei arrancar os papéis enquanto dormias. Oh pá, desculpa lá, mas tentei arrancar os papéis. E disse-te que não havia problema, mas não fiquei contente. Lembras-te de como lavámos a porta com água morna, fairy e umas luvas de crescidos (“foi uma grande asneira que fizemos, não foi?”, perguntaste). Eu disse que não foi bem uma asneira, para não te preocupares, mas acho que vou acabar a decapar a porta. Foi uma asneira de todo o tamanho, além do mais ainda há tão pouco tempo fizemos as obras. E as luvas não eram bem tuas, percebes, filho? Umas luvas M de borracha não são para meninos de cinco anos. A mãe emprestou-tas e disse que eram tuas, mas no fundo só podiam ser de alguém com as mãos grandes. Usei-as depois para lavar a loiça e não estragar as unhas.

Olha, e aquele cortinado que escolheste para a casa de banho, bem, aquele cortinado é muito feio, filho. Não é assim tão divertido ter as linhas do metro na banheira. Eu sei que disse que sim. Mas também te disse que podia acontecer que esse cortinado se estragasse, e pode ser que ele se estrague sim, mas talvez eu faça de propósito, percebes? Talvez o rasgue e depois diga olha, rasgou-se! Já não posso ver a casa de banho com aquilo. E talvez te diga que não comprei igual porque não havia igual, mas lá na loja havia tantos que será difícil aquilo esgotar. Eu disse, bah, não pode ficar assim tão mal, não é? Mas pode. Tanto que ficou. Há muito tempo que não comprava uma coisa tão horrorosa. Então, quando se estragar temos de substituir por um bonito, estás a perceber? “Sim, fazemos assim: ficamos com ele durante muito tempo. Depois quando se estragar compramos outro igual. A partir de agora compramos sempre igual, não é?” Bem, eu não diria isso. “Vá lá. Compramos sempre igual! Assim vamos ter sempre as linhas de metro na nossa banheira! Vai ser tão lindo, não vai, mamã?

Vai, filho, claro que vai.

sábado, 3 de janeiro de 2015

alice.

Hoje sonhei que te perdi. Já aconteceu, perder-te por minutos, olhar para ti, ali onde estavas a brincar, e já lá não estares. Procurar-te com o coração a mil e depois encontrar-te. Hoje foi diferente.
Sonhei que estávamos naquela terra, e que o envolvimento das pessoas era lânguido e promíscuo. E havia tanto que eu não percebia. Havia uma piscina, no meio da sala havia uma piscina, tão grande que se podia vir para fora, para a beira, e saltar. Via-se o fundo com tacos de madeira, as beiras da piscina com tacos. E era tão funda... E tinha, o quê?, uns 50 metros.

Eu mergulhava, nadava, tenho tantas saudades de nadar, e depois não te via, perdia-te. Saía de fato de banho e perguntava se te tinham visto, onde estavas, que és assim, tolo e distraído, e poderás estar desorientado. Onde poderás estar desorientado agora?

Saída da piscina, ia descalça para a relva. Sobre a relva a gritar o teu nome. Subitamente, já não estava na sala, estou fora a gritar o teu nome. Henriqueee! Chego àquele edifício, e grito para a varanda: Tânia, Maria, viram o Henrique? Não, vão para dentro, procurar, ver se lá está. Parece um farol, um moinho. Entro para procurar também.

Lá dentro, tum-tum-tum-tum, batida de música disco, fumo de tabaco no ar, beijos entre as pessoas, álcool. E onde está o Henrique? Não me agarrem. Onde está o Henrique?
Ninguém sabe. Procurem comigo. Preciso de todos a procurar. Espera. Estou à procura há cinco, dez minutos. Basta: vou ligar à polícia. Onde tenho o telemóvel? Preciso do telemóvel. Preciso de um telefone qualquer. Viram o Henrique? Alguém tem um telefone? Ai, estas pernas que não andam, quero correr. O que se passa com estas pernas? Henriqueee! Anda à mãe, filho. Não me faças isto. Ai, meu deus, onde estás tu? Viram o Henrique? Alguém tem um telefone? Henriqueee!

Ah, estás aqui. Ai, ainda bem que aqui estás. Achava que te tinha perdido. Então agora vens sempre para a caminha da mãe durante a noite, é? Pois, estamos com tosse. Tu e eu; temos de ir ao médico. Hoje vamos ao médico. Agora deixa-me abraçar-te só um bocadinho. Já vamos ver bonecos. Vou ensinar-te o meu número de telefone. E a morada desta casa. Vamos decorar? Repete comigo. Já estás crescido, se te perderes vais-te safar. Agora deixa-me abraçar-te. Vamos ficar assim só mais um bocadinho.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

os azeites.

«Ó, bebeste do meu copo e agora não posso beber. Já bebeste e eu ia beber, agora já não posso. E terminas sempre antes de mim. Eu queria terminar primeiro. Não gosto desta sopa, não quero cenouras, porque é que não passas a sopa? Vês, já me sujaste! Eu gosto de sopa só molho. E o hambúrguer está esturrado. Estragaste! Queria massa e não arroz. Posso comer uma bolacha daquelas à sobremesa? Não queria dessas, queria aquelas. Não gosto dessas. Ó minha vida, porque é que não compraste daquelas?»

Ai, filho, estás tão chato... Se continuas assim vou comprar um daqueles envelopes almofadados grandes, meto-te lá dentro, fecho o envelope, ponho um selo e mando-te para Lamego para ao pé dos teus avós.
…´


«SOZINHO?!»