Vais fazer seis anos no dia seis. Sabes,
a mãe também casou os anos quando fez trinta anos no dia trinta, percebes? O
mano é só quando fizer vinte e quatro. Agora és tu: vais casar os anos. “A
sério que vou casar?!” Não, filho. Não podes acreditar em tudo o que te digo.
Há coisas que dizemos que não são bem aquilo que dizemos. E não é assim tão
grave que estejamos a mentir. Não podemos ser sempre literais.
Por exemplo, gostas de me pentear.
Na última festa da tua escola fizeste-me tranças. Eu não me importo, mas aquilo
não é bem pentear, filho. Dizes que estás a pentear-me, eu digo que me estás a
pentear, mas no fundo não é bem isso. Percebes? Até porque vai-se a ver e estou
despenteada. E não deixo de gostar de ti por não fazeres exactamente aquilo que
dizes que fazes.
Outro exemplo: adoras o meu colo. E
eu também adoro dar-te colo. Mas quando estou num casamento com um vestido de
cetim preferia que estivesses no chão, e não no colo. E naquelas alturas pode
ser chato, mas a verdade é que preferia que não me enrodilhasses, percebes?
Preferia dar-te a mão, manter-te no chão, é chato que queiras vir para cima de
mim, e preferia que fosse o mano a dar-te o tal colo.
Também quando ponho na cabeça a
coroa feita com folhas e pauzinhos, não acho que aquilo fique propriamente bem,
apesar de dizer que sim. E digo, olha tão giro que fica, fica sim senhor, mas
sei que o meu cabelo está ridículo, sei que faço figura de ursa. Adoro dar
palmadinhas na boca para sair um u-u-u-u-u-u-u-u de índios a sério, mas não
iria com a coroa de folhas para o trabalho. É como os colares de massinhas. Gosto
que os faças, mas também não os levaria para o trabalho.
E sei que adoras cozinhar. E sei que
usas o meu fogão, o descasca-cenouras e uma ou outra faca. Mas, repara, não
cozinhas bem sozinho, ou cortavas-te todo! Quando me perguntas se a faca é
mesmo “perigosa”, e eu te digo que sim, bem, no fundo estou a mentir; ela não é
perigosa. Se fosse perigosa não ta dava, percebes? É como quando brincamos aos
médicos e te digo que me dói a barriga. Não me dói nada de facto. Porque,
quando dói, vou buscar um copo de água e tomo um ben-u-ron. Já quando tu nasceste
doeu muito, não foi assim tão fácil, nem tão simples como te disse. Tive de
fazer muita força e achei que não ia conseguir. Há uma altura em que achamos
que vamos morrer. Sabes quando te digo que consegues tudo, claro que consegues,
só precisas de tentar? Bem, não é bem assim, não se consegue tudo, sabes? Nem
sempre se consegue tudo e muitas vezes sabemos que não vamos conseguir e
dizemos que sim, que conseguimos. Também vais ter de dizer isso aos teus
filhos, um dia. Um dia vais ter de lhes dizer que está tudo bem, mesmo se eles
não conseguirem. E saberás que não estará tudo bem. E não, o Urso não é bem teu
filho.
Sabes quando lavas o chão, quando
varres, quando aspiras, quando limpas o pó, quando passas a ferro? Eu gosto que
o faças, juro que sim, gosto de te ver a bulir, gosto de te educar assim. Mas
às vezes dava mais jeito que ficasses sossegado no teu quarto a fazer legos. É
que digo que me estás a ajudar, mas muitas vezes desajudas muito, compreendes? E
bem sei que adoras escolher as coisas para nós. Mas ainda tens de refinar o teu
gosto. Sabes o que é refinar? Aquela porta que ficou com aqueles papéis colados
foi decorada por ti, com uma tesoura e um catálogo da Abreu. Dei-te corda a
dizer que estava a ficar muito lindo, mas depois tentei arrancar os papéis enquanto
dormias. Oh pá, desculpa lá, mas tentei arrancar os papéis. E disse-te que não
havia problema, mas não fiquei contente. Lembras-te de como lavámos a porta com
água morna, fairy e umas luvas de crescidos (“foi uma grande asneira que
fizemos, não foi?”, perguntaste). Eu disse que não foi bem uma asneira, para
não te preocupares, mas acho que vou acabar a decapar a porta. Foi uma asneira
de todo o tamanho, além do mais ainda há tão pouco tempo fizemos as obras. E as
luvas não eram bem tuas, percebes, filho? Umas luvas M de borracha não são para
meninos de cinco anos. A mãe emprestou-tas e disse que eram tuas, mas no fundo só
podiam ser de alguém com as mãos grandes. Usei-as depois para lavar a loiça e
não estragar as unhas.
Olha, e aquele cortinado que
escolheste para a casa de banho, bem, aquele cortinado é muito feio, filho. Não
é assim tão divertido ter as linhas do metro na banheira. Eu sei que disse que
sim. Mas também te disse que podia acontecer que esse cortinado se estragasse,
e pode ser que ele se estrague sim, mas talvez eu faça de propósito, percebes? Talvez
o rasgue e depois diga olha, rasgou-se! Já não posso ver a casa de banho com
aquilo. E talvez te diga que não comprei igual porque não havia igual, mas lá
na loja havia tantos que será difícil aquilo esgotar. Eu disse, bah, não pode
ficar assim tão mal, não é? Mas pode. Tanto que ficou. Há muito tempo que não
comprava uma coisa tão horrorosa. Então, quando se estragar temos de substituir
por um bonito, estás a perceber? “Sim, fazemos assim: ficamos com ele durante
muito tempo. Depois quando se estragar compramos outro igual. A partir de agora
compramos sempre igual, não é?” Bem, eu não diria isso. “Vá lá. Compramos
sempre igual! Assim vamos ter sempre as linhas de metro na nossa banheira! Vai
ser tão lindo, não vai, mamã?
”
Vai, filho, claro que vai.
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