quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

o talho.

Tenho um coração enorme. Aí o dobro do tamanho dos corações dos porcos, assim. Vi-o numa das primeiras dissecações e não conseguia tirar os olhos. Fartamo-nos de observar fotos e esquemas e filmes com corações e nunca estamos à espera de que seja tão grande.

Tinham-me avisado do cheiro. Sou ousado, queria ver a que cheirava um morto depois de estar numa banheira de formol. Comecei com nariz tapado, de máscara; depois destapei. O professor explicava com o bisturi como se esventrava o morto. Cheirava a presunto, não a formol. E o morto já estava esventrado, devia ter havido uma aula antes, mas mesmo assim ele explicava, para nós sabermos como se chegava ao coração. Eu não conseguia focar as palavras. Só pensava: o coração do morto cheira a presunto. O corpo é dissecado, aberto, afastam-se as costelas, e espreita-se. E é nessa altura que se percebe o tamanho do coração dos homens. Tão grande. Não estamos preparados para termos cá dentro uma coisa assim.

Hoje fui ao talho e não me reconheceram. Ui, meu deus, como tu estás. Não estou de forma nenhuma, não percebo. Tenho um coração grande. É porque estou velho, ou não, tudo me preocupa. Quase choro quando me vejo nas fotos. Não, aí não sou eu. Não me sinto nada com essa imagem. Não estou velhinho. Não estou. Olha para esta. Esta sim. Tinha uns sete anos. Estava na praia com os meus irmãos. É na Fonte da Telha. Sabes quem são? Já na altura era o mais velho. Mais velho mas não o velho, bem entendido. Eles também têm um coração grande. E estão a ficar grisalhos, como eu. Aqui éramos gordinhos. Eu não, sempre fui magro, pois. Nota-se bem que era eu, não? Vê-se logo. Com mais rugas. Sim, um pouco mais magro. Mas mantenho o ar de miúdo. Bem, talvez: ninguém tem ar de miúdo aos quarenta e tal. Eles também não estão iguais. Já te mostrei os meus filhos?

Pareço velho por causa da barba grisalha, é isso. Mas o cabelo espetado é o do meu pequenito. Sim, está aqui está no liceu. Não, namoradas não tem. Mas mostra cá uma garra... E, depois, já deixei de rir do que não me faz rir, já não faço o frete. E se não me apetece mostrar os dentes, não mostro, mesmo que seja para a foto. 

Estou mais magro, está bem, mas estou em forma! Se calhar era isso que queriam dizer no talho: já não me reconhecem, porque estou em forma. Ui, como tu estás (tão em forma)! É isso.

Além do mais há a história do coração. Enorme. Sei que tenho um coração enorme. Deve ser por isso. Até faz impressão, por ser tão grande. São precisas duas mãos para o agarrar.

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