Tenho
um coração enorme. Aí o dobro do tamanho dos corações dos porcos, assim. Vi-o
numa das primeiras dissecações e não conseguia tirar os olhos. Fartamo-nos de
observar fotos e esquemas e filmes com corações e nunca estamos à espera de que
seja tão grande.
Tinham-me
avisado do cheiro. Sou ousado, queria ver a que cheirava um morto depois de
estar numa banheira de formol. Comecei com nariz tapado, de máscara; depois
destapei. O professor explicava com o bisturi como se esventrava o morto.
Cheirava a presunto, não a formol. E o morto já estava esventrado, devia ter
havido uma aula antes, mas mesmo assim ele explicava, para nós sabermos como se
chegava ao coração. Eu não conseguia focar as palavras. Só pensava: o coração
do morto cheira a presunto. O corpo é dissecado, aberto, afastam-se as
costelas, e espreita-se. E é nessa altura que se percebe o tamanho do coração dos
homens. Tão grande. Não estamos preparados para termos cá dentro uma coisa
assim.
Hoje
fui ao talho e não me reconheceram. Ui, meu deus, como tu estás. Não estou de
forma nenhuma, não percebo. Tenho um coração grande. É porque estou velho, ou
não, tudo me preocupa. Quase choro quando me vejo nas fotos. Não, aí não sou
eu. Não me sinto nada com essa imagem. Não estou velhinho. Não estou. Olha para
esta. Esta sim. Tinha uns sete anos. Estava na praia com os meus irmãos. É na
Fonte da Telha. Sabes quem são? Já na altura era o mais velho. Mais velho mas
não o velho, bem entendido. Eles também têm um coração grande. E estão a ficar
grisalhos, como eu. Aqui éramos gordinhos. Eu não, sempre fui magro, pois.
Nota-se bem que era eu, não? Vê-se logo. Com mais rugas. Sim, um pouco mais
magro. Mas mantenho o ar de miúdo. Bem, talvez: ninguém tem ar de miúdo aos
quarenta e tal. Eles também não estão iguais. Já te mostrei os meus filhos?
Pareço
velho por causa da barba grisalha, é isso. Mas o cabelo espetado é o do meu
pequenito. Sim, está aqui está no liceu. Não, namoradas não tem. Mas mostra cá
uma garra... E, depois, já deixei de rir do que não me faz rir, já não faço o
frete. E se não me apetece mostrar os dentes, não mostro, mesmo que seja para a
foto.
Estou
mais magro, está bem, mas estou em forma! Se calhar era isso que queriam dizer
no talho: já não me reconhecem, porque estou em forma. Ui, como tu estás (tão
em forma)! É isso.
Além
do mais há a história do coração. Enorme. Sei que tenho um coração enorme. Deve
ser por isso. Até faz impressão, por ser tão grande. São precisas duas mãos
para o agarrar.
Sem comentários:
Enviar um comentário