segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

o registo.

O Gigio era um bom canalizador, e ela simpatizava com ele. Da primeira vez que o viu, achou que ele tinha os dentes podres. Depois semicerrou os olhos e reparou que as cáries eram caninos e incisivos de ouro, aliados ao seu preconceito. Ele e o senhor Peixe, que tinha cara de peixe e olhos de peixe, chamavam-na patroa. A patroa quer assim ou assado? Ó patroa, temos aqui um problema; esta parede não pode vir abaixo… Quando os deixava a partir azulejo, a pintar, a levantar tacos ou a fazer a instalação elétrica, dias havia em que ficava com a impressão de que bastava transpor a soleira da porta para passar de patroa a gaja (esta gaja quer tomadas em cada esquina, p*** que pariu tanta tomada), mas normalmente eles eram simpáticos e ela era a patroa. E regra geral eles gostavam dela.

Quando conduzia distraída e distraída entrava na rotunda sem dar passagem, mesmo quando estava segura de que não abusara do blush e de que a batata vermelha tinha ficado no quarto do miúdo, tinha a certeza de que a chamavam palhaça. E com razão: ela odiava conduzir, tal como não gostava de cozinhar. Fazia-o por pura obrigação e sempre que podia fugia. Aliás, tão facilmente queimava o estrugido como o asfalto; a diferença é que não era a speedar, mas a torcer o volante para não se despistar. E, sempre com grande desinteresse, era capaz de ficar a costurar enquanto o leite vasava, vasava, vasava, com o mesmo à-vontade com que se maquilhava no semáforo (o que é que foi? esqueci-me aqui do eye-liner...).

Na intimidade, chamavam-lhe muita coisa, dependendo da palavra "F": se estava fofinha, era uma querida; se estava furiosa, nem vos conto. Na lavandaria da frente, quando ia lá deixar o fato do mais velho, trazia o talão onde dizia "Vizinha. PAGO". O senhor do segundo esquerdo, que tocava a avisar das chaves na porta, chamava-a vizinha da frente. Para os polícias da esquadra, no fundo da rua, era a destrambelhada-que-só-quando-lhe-acenamos-acende-os-faróis. No cabeleireiro, a Beta e a Cristina chamavam-na minina, giraça ou lindona. Na creche, para todos, lá vinha a mãe do Henrique; tal como em Espanha quem viajava era a mãe do João, e mãe do João era a mulher de roupão cor-de-rosa que aparecia à varanda com ar de sono a pedir desculpa a quem estivesse fora da carrinha do senhor Pisco, a dizer que ele já vai, já-já, e que tinha na testa escrito "culpada" por ele estar atrasado. Para o irmão, sempre foi irmã. Em Lamego, todos a conheciam por Aldinha. As amigas chamavam-lhe querida, minha linda ou Aldita.

E depois o João chamava-a só mãe. Quando queria alguma coisa, pisava o risco ou a sentia moribunda (ela morria de saudades, sabiam?), soltava um mãezinha-isto, mãezinha-aquilo. Para o Henrique, era mamã, mamã-linda e meu amor. Quando ele vinha de casa do pai, de quando em vez passava a papá. Depois de uma temporada no Cacém, em Castelo Branco, no Sobral ou em Lamego, virava avó. Quando ele saía da creche, tantas e tantas vezes mudava de nome para Rosa, Soraia, Elsa ou Cristina. Às vezes, em resposta ao "Bom dia, piruças", surgia um "Bom dia, Periquita".

Em suma, o nome próprio servia para pouco mais do que para os pais, o irmão mais novo, e o destinatário das contas para pagar. Até as cartas do Círculo de Leitores que recebia gritavam PARABÉNS, Sra. MOTA! GANHOU UM TELEVISOR! Alda era, então, uma raridade, apesar de se usar, como lhe explicou a mãe quando, na adolescência ela se questionava porque não podia ser Ana, ou Catarina, ou Maria, ou Alexandra, ou Margarida como toda a gente, quando as Aldas da idade dela estavam todas escondidas num bunker. Hoje (chiu, venham cá, para ninguém nos ouvir) ela até gosta, e por vezes goza com a sorte, de ter um nome principal esquisito (não-não, Alda não leva agá) e tantas alcunhas para desenjoar.

Não é difícil simpatizar com ela, a menos que se leiam os emails que envia. Dizem (eu não sei, só escrevo o que se diz) que nas cartas e nos mails é mais fria, quase formal, ríspida até. Com a mania de corrigir tudo e aquela pontuação desenfreada, picuiiinhas que só deus sabe, só apetece apagá-la ou pô-la no spam. Mas quando se olha para ela, gengivas grandes e dentes de cavalo a sair da boca para fora, é impossível não duvidar de que se calhar a despassarada da mulher até tem coração.

E tem. Mas tem má memória também. E não sabe ficar calada.

Quando as obras terminaram, apanhou o Gigio e o senhor Peixe a tirar fotos do trabalho finalizado. Deixem lá isso: depois, quando estiver tudo mobilado, vêm cá beber uma jola e tiram as fotos a tudo bonitinho. Oh, patroa: não temos essa sorte. Nunca tivemos. E então ela, que sempre gostou de se meter em alhadas, prometeu que sim. Prometido. Está prometido. Um dia chamá-los-ia. E parto do princípio de que seria por recado mandado para a empresa ou por telemóvel; não por telepatia. E aí ela chamá-los-ia pelo nome e eles marcariam o dia com a patroa. Até hoje.

Claro que não se pode confiar nesta gaja.

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