quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

o aquecimento global

Quando andava na primária, Portugal continental tinha só onze rios. E eu, que gozava de boa memória, decorava o número da conta bancária e as matrículas dos carros que os meus pais tinham tido, sabia o nome deles todos: Minho, Lima, Cávado, Ave, Douro, Vouga, Mondego, Tejo, Sado, Mira e Guadiana. A sério. Eu sabia-os a todos. De mão dada com a Dorinha, decorei os seus nomes a caminho do colégio quando já éramos grandes o suficiente para irmos sozinhas e pequenas q.b. para chegarmos lá a pinchar.

Uns anos antes, de manhã, era a avozinha que passava e nos levava, a mim e ao meu irmão, de bata bege vestida, que era assim a nossa farda. Na mochila, tínhamos o lanche, protegido nuns envelopes de tecido bordados ou de renda que a mãe guardava na cozinha ao pé dos guardanapos de pano que usávamos às refeições. O meu irmão não gostava de tulicreme; eu não gostava da marmelada da avó, que ficava rija quando secava. Lembro-me de um dia ter havido uma troca de lanches. Quando cheguei ao recreio, vi que tinha a sandes de marmelada. Não gostava, mas sempre fui de bom estômago, e deus me livre de ficar com fome: nem pensei duas vezes e comi-a. Levava as dentadas a meio quando vi o meu irmão vir ao longe, do recreio de cima, com o saquinho e um pão com tulicreme nas mãos…

Adiante: à tarde, era o avô a ir-nos buscar para almoçarmos. No regresso da escola, por trás da Sé, passávamos pelo senhor Fernandes, o simpático dono de uma drogaria que, tal como o avô, cheirava a Old Spice e trazia um pente no bolso de trás das calças, com que alisava o cabelo castanho. Nessa loja, onde sempre fazíamos uma paragem, estava no edifício onde em tempos tinha trabalhado o doutor Fráguas, um dentista com a má fama de fazer tratamentos dentários sem anestesia. Passávamos a Gráfica, mais os seus livros e os seus santinhos, e, no fundo da avenida de baixo, o telefone rouco que gritava aos taxistas. Era lá que se situava a única paragem de táxis da cidade, e era lá que dávamos mais dois dedos de conversa com os amigos do avô, ele que cumprimentava toda a gente por quem passava erguendo ligeiramente o chapéu.

O avô trabalhava na CHENOP, a Companhia Hidroeléctrica do Norte de Portugal. Era eletricista; além disso, engenhocas. Tinha uma sala de arrumos onde passava tardes inteiras a engenhocar (é comum na família o hábito de ir para a garagem, para o sótão ou para a arrecadação tratar de coisas, tanto que se não souberem de mim devem experimentar procurar nos tetos falsos, ao pé da árvore de Natal). Não sabia cozinhar, nem queria saber, não se levantava para pôr a mesa, para arrumar a cozinha, não sabia tratar da roupa. Mas era mesmo assim: outra época, outra mentalidade. Nem a avó deixava que fosse de outra maneira. Chegava ao fim da refeição e puxava do seu português suave enquanto dizia “Queres mais? Vê lá: não vás dizer como disseste da outra vez.” Claro que nunca tinha havido vez nenhuma em que tivéssemos dito nada que não fosse elogioso para aquela avó que cozinhava e que nos creditava a barriga com quantidades generosas de doces, rissóis e laranjada…

Falando em comidas, o meu pai conta como, quando era pequeno, existia um explicador que advertia os estudantes de que “se não estudendes não comendes” (ou “se não comendes não estudentes”, já não sei bem). Costumamos repeti-lo em família, para nos rirmos um pouco e incentivar uma segunda rodada do cabrito, mas a fórmula não funciona bem na boca da malta sentada à mesa no nosso século. Do mesmo modo, independentemente do número de esferográficas que já comprei em toda a vida, nunca consegui reproduzir o piar do bico fino com que a freira do colégio desenhava no bloco de recibos o meu nome e o que o meu pai pagava para me ter a estudar lá.

Nos almoços de antigos alunos, nas reuniões de ex-amigos, nos jantares de curso, são reproduzidas expressões que nos ficaram gravadas doutros tempos. Em noventa e nove vírgula nove por cento das vezes fecha-se a conversa com um silêncio, durante o qual tentamos escutar na nossa cabeça aquela voz, as mesmas palavras, vindas da boca dos próprios, que já morreram, ou que já não andam por cá. Não sabemos contar; não soa bem, faltam-nos quem falou, o som. Parece que não foi bem assim quando se diz alto. Parece mentira.

Também se explicar a outra pessoa que havia só onze rios em Portugal pelos meus dez anos, ninguém acredita. Mas eu dizia à boca-cheia que os sabia a todos. E depois repetia: Minho, Lima, Cávado, Ave, Douro, Vouga, Mondego, Tejo, Sado, Mira e Guadiana.

Agora há mais umas centenas. Isto das alterações climáticas é tramado.

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