quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

a cobra.

Se me citarem e não for verdade, lamento: limito-me a recontar. 

Consta que o Dom Dinis malandreco gostava de dar uns passeios junto das freiras do convento de Odivelas. Ao que parece, Isabel, a querer certificar-se da razão das escapadelas do rei, tê-lo-á seguido até ao topo do monte, onde ficou a aguardar o regresso. O rei, ao ver a rainha com os seus archotes, ter-lhe-á perguntado o que fazia ali. E, com ar de santa, ela terá dito: “Eu? Estou aqui para vos alumiar.”

Tudo para vos contar onde estou: no Lumiar. Passei a infância a ver na televisão os programas da RTP transmitidos daqui. Trinta anos passaram, e volta e meia venho cá parar.

Há uma cobra desfeita no meio da Alameda das Linhas de Torres. Que-nojo. Espero o homem verde e nem consigo olhar bem. Uma cobra tão gorda, tão grande, no meio da cidade. Trilhada pelos carros que passam, com as tripas de fora como gato atropelado na estrada. Nojo. Tão grande, é uma jiboia (aquilo é uma jiboia, não é?). Nojo, nojo. Nunca vi uma coisa assim, nunca imaginei ter um réptil tamanho no meio da cidade, ali a dois passos da roulotte das farturas que anuncia “Temos multibanco”, ali ao lado dos agarrados, donos dos lugares onde cabem dois carros.

Nojo, tanto nojo. O semáforo fica verde e eu até olho de lado. Está com os trilhos das rodas que passam marcados. Uma cobra tamanha no meio da cidade. Não estamos na aldeia, terá vindo de um circo. Nojo. Tenho os pelos em pé até onde já não tenho pelos. Odeio tanto, odeio cobras. Estou a atravessar. O semáforo está verde. Nem quero olhar.

Ah. Parecia mesmo uma cobra. Está bem. Também quem é que deixa um cachecol no meio da estrada?

- Estou? Boa tarde. Queria marcar uma consulta de oftalmologia, por favor.

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