segunda-feira, 30 de novembro de 2015

a eminência tenar.

Como reconhecerias o teu filho se to tirassem? Olho para a foto e pergunto-me. Acho que isto acontece quando se tem os filhos longe: estamos sempre a tentar descobri-los onde os possam captar. A RTP está a cobrir um evento em Madrid? Fico colada ao plasma a tentar que um acaso o apanhe. Uma revista mostra o Reina Sofía? Perscruto a malta a olhar para as obras de arte, e tiro-lhes as medidas: este não, este também não, este tão-pouco.

Do que precisas de ver, Alda? Até onde to têm de mostrar para teres a certeza de que é ele?

Na foto, a promover a jornada onde ontem brilhaste, um jogador de goalball defende. És tu, filho? Responde. A foto não responde. As fotos respondem tão mal às mães com saudades.

Ele tem um sinal ali, sabes que existe, sempre existiu, sabes que dificilmente sairá. Mas na foto não se vê o sinal. E há o Photoshop que apaga sinais, também valeria de pouco. As pernas… ah, essa posição de defesa é dele, tenho a certeza, tenho quase a certeza, acho que é, pode ser, deixa ver melhor.
Os ténis, claro, amarelo-gritante, lembro-me tão bem, fui eu que os comprei, são dele de certeza. A perna meio alçada com os ténis que eu lhe comprei. Pões sempre a perna assim. Defendes tão bem. Pena não dar para perceber a marca dos ténis. E não defendem todos assim, os que defendem bem?

A barriga, de fora, magra. Emagreceste tanto, filho, estás tão em forma. Serás tu? É tua a barriga de fora? Mais acima, as mãos. Tudo claro. As mãos.

Pena. Tenho pena, meu filho, que não te tenham fotografado para isto. Assim, ver-te-ia. E tenho saudades de te ver, filho. Não há Skype que apague estas saudades de te encontrar de vez em quando, quando não estou à espera, tal como quando vinhas mais cedo das aulas e estavas no teu quarto quando eu chegava com o teu irmão.
Talvez um dia. Tens fotos igualmente bonitas.
Parabéns por ontem.


(Publicado no meu facebook a 30 de novembro de 2014)

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

os super-heróis.

Chove a potes, e ela tem um casaco de malha vermelho e três rolos de papel nos braços. Olha para o céu. Caraças, como chove. Não se lhe vêem botas, não se lhe vê guarda-chuva, não tem impermeável sequer. Até onde irá aquela senhora com os rolos de papel, motivos de Natal, em que estado chegará aquele papel às prendas que vai embrulhar. O que leva uma mulher de casaco de malha, num dia em que o céu desaba, a comprar três rolos de papel com estrelinhas, e pais-natais, e neve. Talvez vá esperar aqui no metro, até que a chuva amaine. Não espera, deve estar com pressa. Não esperou.

No cruzamento em frente a Chelas, um senhor de gabardina amarela empoleirado num escadote tira a chave de fendas e mexe no semáforo desligado. Capuz na cabeça, com os óculos a escorrer como pára-brisas fustigados com bátegas, vai compondo. Não vais apanhar um choque, pá? Isso aí não é electricidade? Não seria de te ires abrigar ali na bomba até que a tempestade abrandasse? Não: faz o seu trabalho, continua, concentrado como se nada fosse, sem guarda-chuva, ensopado. Um pinto a compor o semáforo.

No dia nacional do pijama, os miúdos e os graúdos vestem-se a preceito para irem à creche. A diversão de pantufas é garantida, e debaixo de telha até tem piada sentir-se lá fora a chuva, que chove tanto lá fora, e nós aqui dentro quentinhos, a fazer guerra de almofadas e de ursos com as educadoras vestidas para dormir. Tão mal lá fora e nós tão bem aqui dentro, tão quentinhos. E depois há os que saem e vão de pijama à natação, no fundo do
quarteirão. Vão sem guarda-chuva, com as capas plásticas, e sorriem pelo dia do pijama. Sorriem mesmo. E há os que vão de pijama até ao carro dos pais, e não têm galochas que os protejam, que tapem a flanela do fundo das calças, que impeça o fundo das calças de ficar ensopado. Ficam ensopados, e sorriem pelo dia do pijama. Chegam ao carro e chove, ai chove tanto; parece que o guarda-chuva do homem-aranha quer voar, ficam com os óculos salpicados, os cabelos molhados, brrrr, que frio. E, enquanto se lhes põe o cinto, dizem que adoraram e sorriem. Eles sorriem apesar da chuva.

Quando for grande quero ser assim: impermeável.

(Publicado no meu facebook a 20 de novembro de 2014)

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

folhas caídas.

Pára. Não precisas de escovar o cabelo mil vezes à frente do secador até que ele fique esticado e seco. Porque fazes isso? Não ficas bem sem cabelo, tens a cabeça grande, tens as orelhas grandes, és grande, monstruooooosa. Precisas de cabelo grande, comprido. Topas?

Já sabes o que acontece no outono, todos os anos é isto. Pára de olhar assustada para essa escova. Também não ficas bem assim, assustada, ficas feia. Sorri e esquece lá isso, ainda tens tanto cabelo. Então desde que deixaste de o pintar até parece que tens mais, não é? Vais nada ficar careca; não se vê nada o couro cabeludo; é impressão tua.

Já reparaste que tens caracóis? Quando eras bebé também os tinhas. Tens caracóis e ficas linda a sorrir, não é? Então porque não sorris? Deixa lá a porcaria dos piolhos, pára o stresse, vai mas é ler um romance qualquer. Não te chegou um livro ontem, da Wook? E já o leste, já? Não, pois não? Vale-te de muito estares aí a olhar para o cabelo. Para de o cofiar, carago. Aproveita o tempo. Esse espelho estava a precisar de uma limpadela. E essa pele? Vais para a cama maquilhada outra vez, não? Pior do que uma tipa sem cabelo é uma tipa sem cabelo e sem pestanas: vai lá limpar a cara!

Ainda tens muito, descansa. Quem olha para ti nem te vê o cabelo… Já viste tão alta que és? Quando muito vêem-te os cabelos na camisola, nas costas, aqueles que te vão caindo ao longo do dia quando puxas o cabelo para trás enquanto pensas. Também não paras quieta, não há-de o cabelo cair. Vê se paras quieta, mas é. 

Está lá sossegada. Vai dormir. Põe uma ampola daquelas para a queda do cabelo dos homens e vai dormir. Sim usa as dos homens, e vai dormir. Lê qualquer coisa para descomprimir e não penses mais isso. Faz uma trança, vês como tens cabelo para uma trança? Põe uma ampola e faz uma trança.

O teu mal é sono.

(Publicado no meu facebook a 11 de novembro de 2014)

terça-feira, 3 de novembro de 2015

onomatopeia.

Não havia horta, apenas um quintal com cravos e catos nas traseiras que deitavam para a casa da Dona Conceição. Quando íamos visitar a avó, trazíamos o resto das fritas (como ainda hoje o meu pai chama às rabanadas, às filhós, às fatias douradas, aos sonhos e às pataniscas). Em casa dela, naquelas águas-furtadas da rua de Fafel em que o corredor parecia a sinuosa estrada para a Régua, tinha potes com joaninhas (bolachas cobertas de chocolate e embrulhadas em pratas de cores diferentes, que pescávamos e comíamos às mãos-cheias), meias-luas da Dan Cake e os rissóis que a menina Alfredina (uma senhora para menos dez anos do que ela, mas sempre menina, que nunca se esquecia dos nossos anos e escrevia quadras nos postais de Natal) ajudava a fazer. Ambas tinham uma marca sob o peito, por encostarem o passe-vite com que trituravam os marmelos cozidos e as batatas do empadão que preparavam para os sábados.

O meu avô partiu cedo, e recordo sempre a avó a dizer que o Natal tinha de ser lá porque se calhar era o último ano, que tivéssemos paciência porque ela já não durava muito tempo... Mas durou. Tanto que, ao fim de dez, quinze anos, já ninguém acreditava nela, que seria o último ano, não, nada disso: ela tinha ficado e teria a sua missão, e ficou tanto que por vezes comentávamos que nosso senhor parecia ter-se esquecido dela, sempre a prometer, sempre a dizer que agora é que era, que tarda nada ia ter com o meu avô.

Eu, os meus irmãos e os primos do Porto divertíamo-nos com a menina Alfredina a virar de pernas para o ar tudo o que desse para virar de pernas para o ar quando aquela senhora vestida de preto, com cabelo pintado de preto e olhos pretos, vinha visitá-la para chorar pelo marido que tinha morrido. Sabíamos que quanto mais cedo virássemos as escovas das vassouras de pernas para o ar mais depressa a senhora chorona, que punha a avó a chorar, se ia embora. E então, mal nos apercebíamos da visita, tratávamos de pôr a brincadeira em prática. Depois, com modos, de fininho, a beber o leite enquanto a senhora que bebia o chá fungava, olhávamos os olhos uns dos outros e tínhamos a certeza de que tudo funcionaria, e de que o truque ficaria só entre nós. Aliás, mais cedo ou mais tarde, a senhora acabava sempre por ir embora, portanto era óbvio que resultava.

Quando íamos ao sobral ver a outra avó, trazíamos espinafres, grelos, feijão-verde e couves para o frigorífico. As sopas que a minha mãe fazia com as verduras de lá tinham um sabor diferente, bem como diferente era o sabor dos pratos com a sopa que ela fazia na fogueira da cozinha, com feijão e grão e couves aos pedaços, que ficavam cheios até à bordinha. De lá vinham também ovos das pitas. Das pitas da avó e das da tia Amélia. Hoje só a tia Amélia e a tia Maria têm. A minha mãe não tem pitas.

A avó gostava de falar com os animais. Às galinhas chamava pilapilapila quando entrava no pátio e às gatas que lhe comiam os ratos gritava bichiiiinha. Tanta meiguice contrastava com aqueles pés grandes, aquele queixo grande, as orelhas grandes com os lóbulos grandes, a pele áspera e escura do fundo das pernas, assim como eu tenho, daquelas coisas que se herdam e que não se compõem com creme.
Gostava de a ver depois do banho, tomado com sabão azul e branco, a pentear os cabelos grisalhos compridos até ao rabo. Mirava-a nas poucas alturas em que se passeava pela casa com aquele ar de menina, com a sensualidade do cabelo solto a secar sobre aquele corpo rude, áspero, do campo. Depois, os cabelos desapareciam num carrapito e voltava a ser a avó velhinha.

Ontem farias cem anos. Ouviste como te cantamos os parabéns? Ouviste?
Ouviste.

(Publicado no meu facebook 4 de novembro de 2014)

sábado, 24 de outubro de 2015

sábado.

A bicicleta grande está na cozinha; não tivemos forças para a guardar no canto dela. Já bastou erguê-la em braços para descer os dois andares quando a senhora lavava as escadas e nos olhou com ar reprovador: “Não se preocupe, senhora com ar reprovador. Quando regressar a estas escadas a tresandar a lixívia vou voltar a menosprezar as minhas hérnias, e nem uma roda tocará no chão.”

Saímos às dez e voltámos às duas. A roupa que usámos ficou ensopada e ensurrada. Percorremos quilómetros a fazer corridas, a subir e a descer passeios. Fomos ao supermercado em Odivelas, à ótica no Lumiar, a três parques diferentes ora num ora noutro lado. Andámos com as bicicletas no metro, subimos e descemos pontes, subimos e descemos viadutos. Descobrimos na Quinta das Conchas uns escorregas em ziguezague que fazem lembrar o aquaparque e um comboio misturado com os baloiços. Fizemos um piquenique para aguentar até ao almoço. Fizemos lasanha quando chegámos a casa. Comemos a lasanha à bruta e demos de comer à toalha (como é que é, mãe, o molho de tomate sai com fairy?). Saltámos a sopa.

Um dos dois (que não é rapaz) precisava mesmo de uma sesta. Acordámos às cinco, fomos para a Caparica. Tomámos banho de mar no outono, fizemos um túnel onde cabia a retroescavadora e brincámos na areia até ao Sol se pôr. Outro piquenique nas escadas da esplanada a ver as ondas. Fomos ver a ponte que suporta a linha do comboio que percorre as praias e andámos a passear nos carris. Vimos mosquitos à nossa volta e sentimos umas picadelas. Soltámos qualquer coisa sobre estarmos a gostar mesmo deste dia. Em casa, tomámos um duche juntos e cada um tratou das babas do outro com Fenistil. Jantámos a falar com os primos de Leiria pelo Skype. Lemos DOIS capítulos do dicionário por imagens do corpo humano em vez de um. Pedimos mais um mano. Um dos dois (que não é rapaz) rebolou a rir com a pergunta. Ouvimos o Carlos Paião e cantámos a Cinderela aldrabada (“ela corou um pouquinho e respondeu baixinho sou uma panela”). Rimos muito e vimos onde cada um tem cócegas. Parámos quando estávamos a fazer muito barulho. Contámos a história do Henrique que tinha um comboio que levava os meninos às praias. Fechámos a luz. Precisámos de voltar à casa de banho duas vezes, de trocar de T-shirt uma e tivemos frio primeiro e calor a seguir. Há 20 minutos que adormecemos.

Tenho oito mordidas de bichos (uma delas na testa), a canela esfolada, dois arranhões grandes na coxa, pernas, braços e costas a doer, e areia por todo o apartamento. Mas voltava a fazer tudo outra vez.
Amanhã talvez fiquemos por casa.

(Publicado no meu facebook em 24 de outubro de 2014)

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

outono.

Está alguém a fazer marmelada por aqui. Não sejam marotos, é marmelada a sério. Há um cheiro doce a subir comigo as escadas do meu prédio.

Quando eu era pequenina – e o meu pai me virava de cabeça para baixo a tocar na minha barriga “Pimperlim casou maria, pimperlim com quem seria…” – nesta altura do ano havia sempre marmelada. Eu era gulosa, gostava de rapar tudo o que eram panelas onde se faziam doces, e, única menina daquele lado da família, saí mimada. O meu pai chamava-me "pantomineira". Cresci e descobri que era pantomimeira, com M, e a coisa perdeu um pouco a graça, já bem depois de ser pesada demais para fazer de guitarra.

Quando vim para Lisboa, trouxe comigo a arca onde os meus pais tinham o telefone. Costumava sentar-me nela quando falava lá na nossa casa e, como os meus pés não chegavam ao chão, gostava de oscilar as pernas para a frente e para trás enquanto riscava a lista telefónica, as páginas amarelas e a agenda onde estava o número do nosso médico de família, que vinha lá sempre que estávamos doentes, dos avós, dos tios do Porto e dos amigos dos nossos pais. Volta e meia, resmungavam comigo, lá estava eu a "esmodricar" o móvel com os calcanhares. Hoje, não vejo nada nem "esmodricado", nem sequer esmordicado, devem ter restaurado isto, e já chego com os pés ao chão nesta arca que aqui tenho.

Quando, ao fim de semana, o forno começava a cheirar bem, silenciosamente todos desejávamos que a coisa desse para o torto, que a forma estivesse mal untada, que aquilo se desfizesse ao virar para o prato, para termos um pretexto, pobre mãe, de provar o bolo antes da hora combinada. Senão, teríamos de esperar pelo final do almoço para o comer. Atualmente, “encetar” os bolos não tem metade da graça que “encertá-los”.

Não havia cá batatas-palha de pacote, usavam-se batatinhas a sério, cortadas em palitos e fritas durante uma manhã inteira. Precisei de crescer uns trinta anos e uns vinte quilos para perceber o que custaria efectivamente àquela mãe chegar à quantidade necessária para fazer um bacalhau à brás para cinco, lutando contra três miúdos a irem à vez lá abastecer-se às mãos-cheias. O mesmo acontecia com as cerejas descaroçadas e sem pés (ou “pauzinhos”), usadas para fazer doce: o monte das cerejas na panela volta e meia descia, e lá continuava ela, sentada na mesa da cozinha, a ver se o monte atingia a altura suficiente para ser levado ao lume (agora que falo nisso, talvez por essa razão fizesse tantas vezes aquilo à noite, estávamos nós já na cama, sossegaditos).

Sempre achei que ninguém desconfiava que eu gostava de descascar e comer a parte panada dos bifes que acompanhavam o arroz malandrinho, até que o meu pai resolveu, em plena refeição, dizer “ora vamos cá ver se estes panadinhos ficaram bem feitos do outro lado”. Morri de vergonha: do outro lado, claro, faltava a “casca”. Também nunca achei que a minha mãe soubesse que eu comia tulicreme às colheres, até ela ter decidido deixar de o comprar para barrar o pão (eram papo-secos, bolinhas ou vianinhas, mas para nós eram sempre pães), que também tinha “casca” e não “côdea”, como hoje. O meu irmão preferia pão barrado com doce e o outro, pão com marmelada. Ambos calçavam sapatilhas e não ténis.

A marmelada da avó enrijecia com uma rapidez fantástica, que só o dobro da quantidade necessária de açúcar poderia permitir. Ficava tão rija que era possível transportá-la em cestas, uns dias depois, umas tigelas em cima das outras, e poucas vezes se amolgava.

À refeição, ela costumava fazer bolinhas com as miolas da broa de milho. Era sempre fácil perceber onde tinha estado sentada. Hoje, também dou por mim a fazer o mesmo com as migalhas. Mas todos sabem que não é a mesma coisa fazer bolinhas com migalhas e bolinhas com miolas. É certamente por essa razão que me vou sentando onde calha.

E não sei bem porquê, mas deixei de comer marmelada.

(Publicado pela primeira vez em 14 de outubro de 2014)

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

escola nova.

que nunca te falte o tempo, meu amor, a capacidade de brincar. 
que não deixes de ler, procurar, perguntar, perguntar, perguntar. 
que não te falte a vontade de plantar, regar, encher o sabugo de terra e esperar.
que queiras sempre ver no que dá um feijão só - tão alta! -
e fotografar.

que faças amigos, bons, que ames em qualquer lado.
que saibas cair e pedir ajuda, ter genica e estar cansado.
que aprendas que não faz mal, tantas vezes, chorar um bocado.
que te ponhas a ti primeiro, e saibas escolher quem queres ao lado.

aprende tudo, meu amor, e sê forte.

e boa sorte.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

o guarda-sol vazio

Estou na Nazaré, na praia. Eles caminhavam juntos, à beira do mar. Não foi perto de mim, foi longe. Aliás, estava com o miúdo e não queria que ele visse, eu não queria ver. O mar está lindo, o mar do Norte é lindo, cheio de ondas altas, de ondas enormes. Eles caminhavam e o mar estava a puxar. O mar lindo que os acompanhava no passeio, que lhes molhava os pés, o mar estava a puxar. Eu apanhava conchas com o miúdo e não vi, não queria que o miúdo visse. A onda foi daquelas grandes, lindas, e arrastou-a a ela. Ele quis salvá-la. Dizem. Eu não vi, não queria que o miúdo visse. Num instante chegaram os nadadores-salvadores, atiraram-se ao mar lindo, infernal agora, sem medo, para salvarem os dois. Mas só se via ela. Eram dois os que caminhavam ao lado do mar lindo, ondas altas. Mas só ela se via a boiar. E só ela voltou para terra. Todo o dia o mar o procurou. Continuaram as ondas altas, gigantes, juntou-se um barco, dois barcos, mais nadadores, um helicóptero. Ela já a caminho do hospital, e ele ainda ali, ninguém o via, mas todos apostavam que ali estava, mais ali ao meio, mais ao pé das rochas, de certeza que já estava mais longe. Eu não vi, aliás, não queria que o miúdo visse, mas ele continuava lá, de certeza, de certeza já no fundo do mar lindo, por baixo das ondas gigantes, infernais.

No final do dia, um guarda-sol vazio, umas duas toalhas, um saco com umas tralhas. Ao pé de um mar lindo e à espera de uma caminhada sem fim.

(publicado no meu facebook a 2 de setembro de 2014)

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

CRIL. agosto de 2014.

Acorda. Pelo amor de deus, acorda. Não me faças isto, pelo amor de deus. Reage. Oh meu deus. Foi tão rápido. Aguenta-te, vem já aí ajuda. Já estão a parar ali. Chamem uma ambulância. Chamem uma ambulância. Pelo amor de deus acorda. Eu não queria dizer-te aquilo, estamos sempre a gritar por coisas de nada, não é? Mas agora tu vais recuperar e ficar bem. Estás a ouvir? Vais ficar bem. Já vem a ambulância e vais ficar bem. Acorda. Volta. Não interessa o carro, não interessa nada. Cheiras tão bem. Pelo amor de deus não me faças isto. Tens o cabelo a tocar nos rails, desculpa deixar-te a cabeça para trás, só preciso de ouvir se ainda bates. Não ouço nada, não ouço nada. Desculpa abanar-te, mas reage. Pelo amor de deus reage. Não sei nada, não sei o que aconteceu. Acho que desmaiou, não sei. NÃO DIGAM ISSO, NÃO ESTÁ NADA MORTA. Pelo amor de deus, reage. Precisas é de ar fresco na cara, sim. Estás cá fora para apanhar ar. Vais ficar boa. Vais ficar boa. ESTOU-ME A CAGAR PARA O CARRO, DEIXEM A MERDA DO CARRO AÍ. Abre os olhos, meu amor. Desculpa o que te disse, não interessa nada, só preciso que não me deixes, não me faças isto, pelo amor de deus. Acorda. Pelo amor de deus, acorda.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

o progresso.

A foto é do início do mês, dia 6. Este senhor esteve 118 horas a voar sem saber se era possível. Foi do Japão para Honolulu, num avião solar, a acreditar que sim. Algum dia, alguém, mais que não seja ele próprio, terá dito que sim. Vai. E ele foi.

Oito mil quilómetros e cinco dias depois, lá estavam as havaianas a dançar hula.

Às vezes é preciso tão pouco para ficarmos felizes.

sexta-feira, 24 de julho de 2015

o banco do jardim de porto covo.

«Ó vó, empresta aí 27 euros. É uma prancha.»

«Este geladinho sabe mesmo bem. Até os diabetes estão a gostar. Com este calor. Está melhor, esta manhã saiu um nevoeiro do mar, viste ó José, mas saiu mesmo. Olha lá a altura desta rapariga. Porque será que as pessoas agora crescem tanto? É como a cunhada que abalou para o Brasil. Disse que ele tinha mil pares de cuecas. Quem é que diz uma coisa dessas. Está como aquele lá que meteu a bomba e matou aquela gente toda. É assim mesmo: são pessoas que têm um cérebro grande demais. E aquela rapariga que morreu ontem? Ela também já não fazia figuras capazes. Custava a assegurar-se. O mundo tá uma coisa que a gente não compreende. A gente não tá posto a ideia dos outros dentro da nossa. Uma pessoa está sempre a dizer, calha dar um aviso e não serve de nada. É como aquela coisa de a juventude ir às discotecas, aquilo é tudo para se porem a dançar e jogarem pesos e garrafas uns aos outros para abrirem as cabeças. Pois ontem também morreram mais dois. Num acidente de carro. Claro, a andarem para aí de noite, vem o outro e mata-os. A coisa acontece de toda a maneira, pois. É desastres, é doenças, está tudo de uma maneira que uma pessoa que tem alguém nunca está sossegada. Olha aquela mulher que vai ali. Xi, que tamanho. Se uma mulher assim tocasse na gente, a gente não se mexia. É uma coisa desmarcada, uma forçaria que não fazes ideia. E a roupa dela?... Nos novos a gente gosta de ver porque fica tudo bem. Agora aquelas velhas da minha idade que querem vestir saias curtas... Eu agora agarrei-me às calças: tenho medo de embicar e cair e a coisa assim protege. Eh a senhora desculpe. A gente aqui a falar e se calhar incomoda, né? Está aí a escrever, se calhar faz-lhe confusão que a gente estêjamos aqui a falar.»

Deixem. Não, à vontade. Nem estava a ouvir. Estou só aqui a apontar umas coisas... ;)

(Publicado pela primeira vez a 24 de julho de 2011)

segunda-feira, 20 de julho de 2015

a mãe.

Amuar, fazer beiço, resmungar e chutar latas vazias são algumas formas de protesto que, independentemente da idade que tenhamos, podemos utilizar para mostrar que estamos em desacordo. Não gosto e, pimba. Não deixas, cá vai. É assim. E é assim em qualquer idade. Tão irritados estamos que quase partimos as portas. Tão nervosos que gritamos até doer a garganta. Tão mas tão zangados que deitamos tudo ao lixo, lixo, bah, e rasgamos e acabou, fora, acabou.
Para fazer face a estas situações, há pouco melhor do que as mães. Quer dizer: não há nada melhor do que a minha mãe em particular, mas as mães de uma forma geral são a arma perfeita para combater revoltas destas.

Então sai-se e, com sorte, volta-se com meio quilinho de mãe. Tira-se do saco e logo ela olha, ouve e fala, dependendo da marca que comprarmos pode ou não roubar temporariamente o que só ela sabe que nos vamos arrepender de deitar fora, força-nos a descontrair, a chorar, e fica a ver se passa enquanto nos dá um jeitinho à roupa. Diz-nos que vai passar, mesmo quando dizemos que não vai nada. E, estamos nós preocupados a queixar-nos de coisas verdadeiramente importantes quando a mãe – algumas marcas, claro – faz tapioca. Ou Tang de laranja fresco com gelo. Ou migas com broa da terra. E aí as coisas por que reclamamos e por que sempre reclamámos passam de gravíssimas e inquestionáveis a "é assim mesmo" ou "um dia ainda nos vamos rir disto", mas "agora dorme, que precisas de descansar". Nunca nos rimos, mas acabamos sempre lá para ver. Estamos ocupados a resmungar com cara de maus e dizem para nos sentarmos direitos, que aquilo faz mal às costas. E damos por nós e estamos a comer tapioca e em amnésia, sem conseguir elencar a razão dos protestos que nos fizeram ir buscar a mãe.

Parece que na Florida, nos Estados Unidos, houve no sábado uma desgarrada de manifestações de gente zangada. A origem dos descontentamentos foi uma bandeira-símbolo da Guerra Civil norte-americana, um pano com a luta de gentes de tons de pele diferentes estampada, pintada com a guerra das cores, que uns querem fora da Assembleia Legislativa da Carolina do Sul, e outros não. É sempre bom discutir por coisas importantes: uma bandeira que fica ou sai é só um exemplo de coisas onde vale sempre a pena gastar tempo e suor, e quem sabe matar umas quantas pessoas.
Ora, na Carolina do Sol, perdão, do Sul, parece que faz um calor dos diabos e que um tipo de suástica na T-shirt começou sentir-se mal. Vai daí, chega o polícia e, não obstante ser negro, leva o neonazi para fora do calor e fá-lo hidratar-se com água. "Mas, mas, mas...", terá dito o branco. "Depois discutimos isso tudo, agora bebe mas é", ouviu-se o polícia, enquanto estendia a garrafa. "Depois contas-me. Agora bebe."
(foto de Rob Godfrey)

sexta-feira, 17 de julho de 2015

a mosca.

No dia do meu casamento engoli uma mosca. Verdade, não brincaria com coisas sérias. No dia do meu casamento engoli uma mosca porque não parava de sorrir. E, como normalmente sorrio de boca aberta e normalmente a zona de Colares, onde me casei, apesar de bonita também tem animais e moscas, lá calhou de engolir uma.

Durante anos brinquei com o assunto e disse que, como ou entra mosca ou sai asneira, o mais provável era aquilo resultar. E resultou. Sou uma mulher divorciada a dizer que o casamento resultou. E não, não estou a brincar. Esse é um tema demasiado sério para brincar.

O dia do meu casamento foi um dos mais felizes da minha vida. A sério que foi. Também não brincaria com isso depois de o meu casamento acabar. Foi um dia perfeito, com um começo, um meio e um fim perfeitos. Não é por o casamento ter acabado que aquele dia deixou de ser perfeito. Tinha o marido perfeito, no local perfeito, o dia estava lindo, a quinta, florida, linda, a família, os amigos… 

O meu casamento que acabou foi um casamento feliz. E os meus filhos são felizes com o casamento que acabou. E mesmo agora, que eu refiz a minha vida, e ele refez a dele, e ele vive na casa que era nossa e agora é dele e eu vivo na casa que não era minha mas agora já é, continuamos a ser uma família feliz.

Os casamentos podem ser felizes mesmo depois de acabarem. E podem acabar exatamente por isso, para continuarem a ser uma boa recordação, um ponto positivo no nosso passado, para continuarem a fazer bem aos miúdos, para nos fazerem bem a nós.

Devo muito ao homem com quem me casei. E estou contente por o nosso casamento continuar a ser uma coisa boa. É mesmo assim, não estou a brincar. Não brincaria com isso também.

Há miúdos a fazer as vezes de arma de arremesso em divórcios que esquecem o que motivou a união. Há casamentos que fedem conveniência, infelicidade, destruição, distância, e mesmo assim nunca acabam. Há casamentos ótimos que funcionam sempre e fazem sorrir, e alguns até nem precisam de aliança no dedo. E depois há os casos em que, por sorte, se consegue acabar o casamento a tempo de não destruir o que uniu o casal. E isto pode ser controverso, aliás, aceito que todo este texto possa ser controverso, mas vou dizê-lo na mesma: ainda bem que me divorciei a tempo.
O meu casamento acabou para podermos continuar a ser felizes.

quinta-feira, 25 de junho de 2015

excel.

Se a nossa sociedade fosse uma folha de excel, haveria várias linhas cruzadas com colunas, com quem fala e quem não sabe falar, quem salta e quem não sabe encestar, quem se expressa e quem não se sabe expressar, quem ri e quem não percebe as piadas.

Não obstante um sentido que falta, uma aptidão mais ou menos desenvolvida, e a dificuldade que uma determinada acção sempre implicará, há quem seja bom e quem seja mau a fazer algo, independentemente do que falhe, dos gostos, das quedas para, dos feitios. Levar a cabo alguma coisa exige bem mais do que ser fisicamente apto.

Deficientes ou não, todos fazemos sexo, ou não, todos temos conversas inteligentes, ou não, todos realizamos tarefas complicadas, ou não, todos criamos bebés, ou não, todos sabemos educar, ou não, todos limpamos, arrumamos, organizamos, ou não, todos cheiramos bem, ou não.

Todos não conseguimos fazer algo, e isso não tem nada a ver com a deficiência que possamos ter. Tem a ver com tudo o resto.

Há limitações óbvias que podem impedir muitos sonhos, mas poucas são as que os podem impedir a todos. Cada um de nós conhecerá casos, bem menos difíceis de atestar medicamente, em que a inteligência, os princípios e o carácter são deficiências bem mais graves e impeditivas do que as dos sentidos.

Ah. Tanta coisa para partilhar esta foto. Este é o Nuno Amade. O David Maia treinou-o, o Nuno cumpriu um sonho e o Fernando Santos, que foi os seus olhos durante a corrida na marginal, disse no final da prova que era um homem feliz.

Às vezes ajudar custa tão pouco. Ninguém paga a ninguém por isso, mas ganha-se sempre.
(Foto: Emídio Copeto Gomes)

sexta-feira, 19 de junho de 2015

chegar a cada instante pela primeira vez.

tudo é único. nada acontece mais do que uma vez na vida. o prazer físico que uma mulher te deu, em certo momento, o prato magnífico que comeste em determinado dia, nunca mais irás encontrá-los novamente. nada é repetido, e tudo é sem rival.

... e este luar por entre as árvores, e até este momento, e eu próprio."

(in Yoga para Pessoas Que não Estão para Fazer Yoga)

terça-feira, 16 de junho de 2015

ET.

Na minha terra, há mulheres que andam quilómetros de autocarro para terem direito a uma promoção de cêntimos e que depois apanham um táxi para casa. Há homens que chamam nomes aos filhos para que aprendam a ser bem-educados em público. Há asmáticos a fumar, obesos a lamber gelados, xico-espertos ao volante de grandes bombas a comer caca do nariz. Ainda hoje, era um Tesla e o tipo de fato, e eu a pensar naquilo…

Na minha terra, gastam-se milhares de euros em inaugurações da treta e cortam-se subsídios. Faltam remédios na farmácia, papel higiénico nos hospitais e folhas nas impressoras das escolas, porque o Estado, o próprio Estado, é o último a pagar… em quase tudo. Há reformados a gastar mais em medicamentos do que aquilo que recebem de pensão. Mulheres a endividarem-se com vestidos que usam uma vez na vida. Casamentos que demoram mais a organizar do que o tempo que o casal aguenta junto.

Na minha terra, há quem pare deliberadamente as escadas do metro para obrigar quem não pode subi-las a fazê-lo, a pé. Há mulheres a morrer de tristeza por não poderem ter filhos e milhões de crianças sem pais. Há velhotes a arrancar flores que demoram um ano inteiro a florescer e miúdos a direccionar os repuxos da rega para que, de manhã, quando vou correr, eu tome um banho assim, de surpresa, tipo relva a precisar de crescer.

Ora, eu já sou grande. Além de que costumo tomar banho depois. Quando me vens buscar?


quinta-feira, 4 de junho de 2015

a poça.

Há troncos revestidos por heras na estrada. Caminho sombrio, fresco, tão bom no calor do dia que aparece assim, desenquadrado, no meio da primavera. A mota deita-se ora para a esquerda, ora para a direita, e a estrada é minha só.

Podia ser bom mas não é. Dói tanto. 

Saí sem dizer onde ia. Bati a porta. Estou tão magoado contigo que agarrei no capacete e vim. Com a inclinação da mota que rola, sinto embalar o batimento do coração que se esfria, tal como a ponta do nariz se esfria neste embalo para um lado e para o outro, em que me acalmo.

Porque me magoas tanto? Porque te proteges magoando-me tanto?

O caminho até ao mar acompanha o estridente eléctrico de ferro que pára na Praia das Maçãs. Ainda não sei se vou para lá ou não. Vou sem rumo. Faz-me bem ir assim sem rumo. Fiz uma viagem parecida depois do fim de semana que passámos juntos. Foi o primeiro. Disseste que me amavas, eu estava de férias. E quando seguia até à praia imaginava se sorririas com os lábios secos e se pensarias em mim da mesma maneira quando paravas para encher a garrafa junto à maquina do café. E quando olhava o mar pensava em ti a trabalhar. E pensava em mim, com tanta sorte. E queria que aquela brisa durasse para

o quê. não te conheço. dói. não mexo o braço. ajuda-me a pôr o braço direito. onde estou. o que é que aconteceu. não sei, não sei o nome, deixa-me. saibo a sangue e a erva. o que é isto. sintra. acho que é sintra. sim, vivo em sintra. quem és tu. não me posso mexer porquê. quem é esta gente toda. o que aconteceu. de onde vem este sangue. não, não tenho ninguém à minha espera. quero-me levantar. deixem-me levantar. o que aconteceu. quero-me levantar.


(Ribeira de Colares, 30 de maio de 2015)

terça-feira, 2 de junho de 2015

carta aos amigos pequenos.

Apareceram-me de repente. Já vos achava perdidos. Sobrepostos, às camadas, uns com os pés para cima, outros com os pés para baixo, com os corpos rasgados, nus, colados com fita-cola.

Avolumavam-se nomes e pessoas e desenhos quando abri a caixa. E nem sempre cheguei lá: quem és? Como é que vocês cabem aí dentro… Onde estiveram estes anos todos? Será possível que vos reconheça pela caligrafia? Pelo envelope? Oh meu Deus, é mesmo.

A Diana. A Andrea. A Ana. A Mónica. O Nuno. Eu sei. Parece mentira, foi há tanto tempo! O Luís salta da caixa e manda-me provar a palavra “mar”. Depois ri-se: “Seria interessante tocar com a língua na palavra e sentir o sabor do sal, não achas?”

Acho, claro.

O Bruno começa a falar, a falar, a falar. Não percebo nada do que escreves, pá. Ao lado, o Américo: “Então já ninguém me conhece?” A Rute manda beijos de Coimbra, beijos, que me ama, a Rute diz que me ama. A Lenka dá-me tabaco checo para experimentar, a Laura textos para ler, a Liliana fala da vida, que é mesmo assim, difícil, complicada, e pede-me juízo. Todos têm saudades. Muuuuitas saudades. Nem dei conta. E corações e beijos e assinaturas estranhas a trancar as cartas. Piadas que não percebia. Bocas que não percebia. Letras que não percebia.

Também tenho. Desenhava uma mota ridícula no final da assinatura, e havia quem me perguntasse o que era aquela coisa ali. Olha, estou mesmo aqui. Fico pequena aqui entre vós todos. Pequena e ridícula, como todas as cartas afinal.

Por trás do Bruno está o Pedro. Aparece muito. Sempre a saltar dos envelopes que se desfazem, vem com a máquina de escrever. E faz colagens e desenhos e enumera perguntas a que tenho de responder. Escreve com cores diferentes: “número 1 – namoras?” “Ich li bi dich”, acrescenta no final, sublinhando que “está em alemão”. Será que algum dia respondi a isto?

Mais abaixo, os meus irmãos. Nem sabia que me tinham escrito tanto: especialmente quando deixei de acreditar em Deus. Orgulho, força, coragem. Muitos incentivos à vida para mim, mais pequena e burra, e inocente, e sem saber nada de nada. Eu não dei conta, mas percebo agora. Ouvem isto? Venham cá: percebo agora. O Bruno continua a falar, e fala e fala. Continuo sem te perceber, Bruno. Ainda não sei porque me diriges as palavras que escreves. Mas agora compreendo cada linha. É bonito. Só não sei porque mo escrevias a mim. Um dia dou-to para publicares. Espero que ainda vá a tempo.

Nunca dei conta de nada, até agora, que estou entre vós. Só agora percebo que não percebia nada do que me escreviam. E que me queixava de que estava a crescer sozinha no meio de abraços e beijos e corações e palavras que nem ousava observar. Só agora percebo que não percebia.

Trouxe um caixote cheio de seres pequenos para esta casa. Pessoas deitadas entre palavras e envelopes que revistei para ver se era de me desfazer delas ou não. Mantive todas.

Deixai-vos estar aí, amigos. Ao pé de mim. Sossegaditos.

Obrigada.

sexta-feira, 29 de maio de 2015

balanço.

Trinta e seis dá para ter menos de quatro quilos e mais de noventa. Para cabelos loiros, castanhos, pretos, acobreados, listados, arroxeados. Raízes à mostra e brancos. Pôr extensões e tirar extensões. Duas vezes. Dá para arrancar milhares de pelos das pernas uma e outra vez, uma e outra vez, uma e outra vez. Ao longo de anos. E ficar com peladas. Dá para partir a cabeça e ser operada. A fingir, no quarto dos miúdos, e a sério. Para agarrar a barriga, para não ter barriga, para mostrar a barriga, para a encolher. Para caras feias e sorrisos amarelos. Dá para cáries, dores de cabeça, comichão nas axilas, sardas, arranhões e feridas. Dá para cortar os dedos com a faca trinta vezes. Ou mais. Dá para pintar a cara com maquilhagem e esferográficas. Para ouvir ralhetes e ralhar, levar e dar palmadas. Dá para pedir, inventar, ouvir, aceitar e engolir desculpas. Esfarrapadas e das boas. Dá para gostar e para não gostar da forma do nariz, das orelhas, das pernas. Dá para beber milhares de litros de água e para morrer de sede. Dá para perder o embalo. E o autocarro. E o metro. Por um triz ou por muito. Dá para ganhar coragem, para falar, para calar, para gritar. Tanto.

Trinta e seis dá para errar e para acertar em cheio. Para ser enganada, endrominada, surpreendida, assustada, beliscada, ajudada, amada, tão amada. Dá para ter e fazer cócegas. Para parir. Para ter medo. Para escorregar. Dá para apanhar azeitonas, cerejas, maçãs, pêras e romãs. Equilibrada numa só perna. Dá para ser fotografada a ler na árvore. Para comer mais do que a conta e para ter fome. Torcer o nariz ao almoço da mãe e pensar em milhares de pratos que os miúdos podem ou não gostar. Dá para queimar o jantar. Noventa e sete dietas. Centenas de chocolates.

Seis sobrinhos, cinco patrões, quatro avós, três casas, dois irmãos, um afilhado, zero abortos. Dezenas de sustos, namorados, medalhas de minimaratonas. Uns quantos acidentes e umas quantas mortes.

Trinta e seis dá para ser traída, para desconfiar. Para o arrependimento. Profundo. Para contar histórias e inventar. Para ler livros, saltar páginas. Guardar segredos. Sorrir. Chorar.

Trinta e seis anos dá para tudo.

sábado, 23 de maio de 2015

da dor.

Não é preciso haver sinais a avisar-nos de que chegámos ao topo. E ainda assim deixamos de erguer a perna e paramos de subir. Quer dizer, temos dias. Quem nunca alçou a canela sem ter escada para trepar?

Não há nada que nos impeça de comer mais uma cereja, e mais uma e mais uma. E paramos, porque mais são demais. E faz doer a barriga.

Quando discutimos e queremos ir ao fundo, ninguém se levanta enquanto não tivermos uma conclusão, ninguém sai daqui enquanto não souber quem fez isto. Mas lá chega a altura em que paramos e mudamos de assunto. Em que saímos para ir fazer um chichi, vou ali à casa de banho. Em que temos só de preparar qualquer coisa para comer, não ligas ao teu irmão? E depois, sem querer, sem sinal nenhum para nos fazer mudar, não conseguimos o mesmo semblante, onde o pus? Voltamos com outra cara. E se mandamos uma trouxada no móvel quando passamos ainda temos desculpa para a cara má, ui magoaste-te?, mas quando vamos direitos à porta da sala já não sabemos do queixume. Onde o pus, onde íamos? Ui, magoaste-te? Já não sabemos qual o queixume.

Face a uma ferida, a um penso, a uma crosta que sara, a uns pontos a repuxar, ninguém pergunta se pode tocar, ninguém chega nem perto. Parece que até o ar pode magoar. Olha-se de longe, de cima, para não incomodar demasiado. Fico aqui sentada a olhar para ti, estás com bom aspeto. Parece sequinha a ferida, vê-se daqui de cima que está sequinha. Não há redomas a barrar o acesso, e ninguém ousa aproximar-se para não magoar. Dói-te? Mais vale não mexer, está quase boa. Vê-se daqui, vejo bem daqui aí em baixo, não é preciso tocar.

Não temos de ir trabalhar, não vamos dar de comer a ninguém, não há compromissos, tratam dos nossos por nós. E mesmo assim saímos da cama, por muito que pareçamos centenários a virar-nos de lado e a agarrar a barriga, saímos da cama. E banho dentes pentear voltar a deitar. Não há um despertador que nos diga que chegou a hora de levantar. Não há quem nos veja, fotografe, quem escreva sobre nós, para nos obrigar a tratar-nos. E mesmo assim fazemo-lo. E, ainda que estejamos sozinhos, perguntamo-nos se nos dói. Ora deixa cá ver como eu estou hoje. E vamos melhorando. Ninguém precisa de perguntar como estamos e vamo-nos tratando e melhorando.

E as pequenas vitórias, como hoje já dormiste de lado ou vês tão rápido que te levantas, mostram que já quase não dói. Continuamos a ter limites e não queremos sinais que nos imponham os limites (tarda nada deixará de doer, tens de ter cuidado quando deixar de doer). E precisamos de saber quando parar de subir as escadas, quando não comer mais cerejas, quando não tocar. Vais proteger-te quando deixar de doer. E, mesmo que nos apeteça fechar os olhos e ter pena de nós próprios, temos de continuar a tratar-nos. Erguemo-nos e levantamo-nos, mais ou menos chochos, com muita ou pouca vontade de ver gente, mas erguemo-nos e levantamo-nos. Sempre com a consciência das feridas que estão por sarar. Se eu tocar aqui, dói-te?

Fina. Pronta pra outra.

quarta-feira, 20 de maio de 2015

a porta.

Foi há quarenta anos. Como se chamava ele?

Tinha vinte quando foi saneado de punho fechado. Mulher, três filhos, tinha pertencido à guarda fronteiriça e, como tal, não conseguia negar as ligações à PIDE. Acredita em mim. Estava-se mesmo a ver que tinha ligações à PIDE, tresandava a PIDE. Ela acreditou. Mesmo quando foi enxotado com murros no ar que não se respirava na sala cheia de gente a votar quem merecia e quem não merecia ficar, ela acreditou. Tresandava a PIDE, não mereceu ficar. Os braços erguidos gritavam para ele ir embora. E ele foi. Deixou mulher. Deixou um, dois, três filhos pequenos, para ir para a Zâmbia. Diz que o exílio foi na Zâmbia, onde continuou a trabalhar.
Ela também ficou, revoltada. Ele era bom, trabalhador, cheirava nada a PIDE, cheirava bem. Cheirava tão bem como no dia em que, quinze anos depois, processo ganho contra o Estado, indemnização no bolso e marcas no olhar, a veio visitar, lhe bateu à porta e disse obrigado.

Nem sei bem. Inacreditavelmente não sei dizer o nome.

sábado, 16 de maio de 2015

do ser.

Nunca a alheia vontade, inda que grata, 
Cumpras por própria. 
Manda no que fazes, 
Nem de ti mesmo servo. 
Ninguém te dá quem és. 
Nada te mude. 
Teu íntimo destino involuntário 
Cumpre alto. 
Sê teu filho. 

Ricardo Reis

quarta-feira, 13 de maio de 2015

a rotina.

Nove e meia.

Chichi, cocó, lavar os dentes, cama. Há um ritual todas as noites quando nos deitamos. Lemos um livro, cantamos uma canção e imaginamos uma aventura em nome próprio. “Agora é a história do Henrique”, manda ele. E é assim.

Todas as noites, era uma vez um menino chamado Henrique, que vive numa casa em Odivelas. E o Henrique faz algo fantástico. Sempre. Por exemplo, come tanta sopa que fica gigante e ajuda o pai a arranjar o telhado. Ou então fica pequenino porque precisa de entrar no ralo da banheira para chegar depressa ao mar.

O Henrique conduz carros, aviões e helicópteros. Cozinha e organiza grandes festas. É amigo íntimo do Pai Natal e já saltou de um continente para o outro agarrado ao lombo de um dinossauro. Tem mãe, pai e muitos filhos.

Dez e tal e ainda aqui estamos. Luz fechada, vá. É tardíssimo. “Daqui a pouco vou lá ter, está bem?” Ficas aqui sossegadinho, mas é. Dorme.

Onze. Meia-noite.

“Quero fazer chichi.” Não precisas de me chamar para fazer chichi. Vai lá.

Uma da manhã. Duas.

“Tenho sede, dás-me água?” Está aqui o copo, não precisas de acordar a mamã. A mamã deixa aqui o copo. Não, ainda é cedo para ires para a minha cama. Fica aqui, mas é.

Três da manhã. Quatro. O que é que foi desta vez, Henrique?

“Diz-me uma coisa. A chuva… é ácida?”

terça-feira, 5 de maio de 2015

o cruzamento.

não paro de tremer a pensar em ti e na tua mota. já passou tempo, já estacionei. já entrei onde fui fazer aquilo. e, apesar das paredes, e dos minutos que passam, e dos olhares que me descobrem a conter o choro na sala de espera, ainda te ouço lá fora. ainda te ouço.

falas tudo em repeat, alto. fazes-me dor de cabeça. ribombam as palavras a dizer que me partes a cara. eu sei que mereço. tenho na cara estampado o soco que não me deste por ser mulher. eu sei que sim, que mereço.

lamento que não te tenha mostrado tudo; talvez guardasses para ti uma ideia diferente das pessoas e do mundo. vejo os teus olhos, nos meus, vejo como olhaste. eu olhei o fundo dos teus olhos e vi o medo, e o ódio de quem teve a vida por um fio, e tinha família e filhos em casa a esperar. ia jurar que me olhavas, quando saíste da mota azul para me chamar assassina. que enquanto me acusavas de ser assassina me olhavas. e tive esperança, cheguei a acreditar que to conseguia contar para ires para casa com uma ideia diferente, que percebesses que a mulher assassina também estava assustada. e que a mulher assassina também tinha medo.

não era preciso teres barrado o carro com a tua mota atravessada, para eu parar e te ouvir falar. não deste conta? eu já estava petrificada. encostada. sem acreditar naqueles segundos de distração que podiam ter sido fatais, mais a tua mota, o meu carro, o outro carro que vinha da esquerda e a carrinha que te perseguia, e a família e os filhos dessa gente toda.

sim, num segundo cruzámo-nos todos, e ninguém bateu mas podia ser grave sim, ninguém se desviou mas podia ser grave.

e, depois, eu estava parada, na berma, e quiseste assegurar-te de que eu não fugia quando me viesses dar um soco. se reparares, abri o vidro para me dares um soco. e pedi desculpa. pedi desculpa. pedi desculpa. e disse-te que sim, que não havia nada que justificasse uma distração de segundos. disse-to depois de perceber que me querias bater, e tu continuavas a querer bater-me, e eu estive a centímetros de ti a querer bater-me. se calhar ainda tremo por isso.

reparaste que não me afastei? no fundo teria doído menos um soco na cara do que este murro no estômago. ao menos teria onde me agarrar.

disseste para eu pensar nisto, antes de dares um murro no carro e me deixares na tua mota. ora, não tenho feito outra coisa. tanto que no caminho até casa tremia tanto que não conseguia manter-me na minha faixa de rodagem. e vim com tanto medo a conduzir que ia batendo em dois carros no passeio. e no cruzamento, naquele, onde eu acabei sem saber se fui eu que não te vi ou tu que não me viste, fiquei a ver quem tinha prioridade, colada ao chão sem conseguir avançar.

pronto, já está. disseste para eu pensar. e não tenho feito outra coisa. espero que seja isto.

sábado, 2 de maio de 2015

generation gap.

Eu sou o médico e tu estás doente. Deita-te aí. Então o que é que se passa, senhora? Ah, deixa ver. Tens uma otite nas pernas. Precisas de uma pica. Vais ser corajosa, está bem? Não custa nada. Já está. Agora vou ter de operar. À barriga. Vira-te para cima. Está bem, pode ser aí de lado. Mostra o umbigo, posso ver? Vou abrir um buraco com este lápis, está bem? Não custa nada. Ah: primeiro vou ter de te matar. Respira aqui a anestesia. Respira fundo. Três vezes. Uma. Duas. Três. Já está. Agora já operei. Mãe, já está. Mãe, já está! Acorda! Uh-uh. Ah. A anestesia, já percebi. Agora vou medir-te a febre. Já está. Deixa ver. Tens noventa quilos de febre. Estás-te a rir porquê? Já acabou a consulta. O número de contribuinte, por favor? Dois zero nove, seis oito cinco, pronto. Já está. Aqui está a fatura, senhora. Sabias que eu sou o teu filho? A sério, a fingir que eu sou o teu filho e tu tens noventa anos. Estás contente? Sim, sou médico. Estás contente? Então a minha casa é a tua! Estive a viver contigo! Tenho 40 anos. Então agora ficas aí deitada? Mâe! Levanta-te! Mã-ãe!

quarta-feira, 29 de abril de 2015

o relógio.

Bengala branca na mão, vais depressa demais. Eu sei que vou mais depressa. É demais. Se eu tropeçar nem tenho tempo de olhar. Tu, olhando para dentro, também podes tropeçar.

Tão relativo é o tempo entre mim e a bengala branca. Tão diferente.

Vê por exemplo, o senhor. Ali no passeio, amparado, o senhor. Devagarinho, onde vais? E eu aqui, stop, acidente à frente, passo de caracol. Eu aqui stop. Iria mais depressa de cócoras do que neste carro a gasolina. Iria mais depressa do que o senhor se fosse de cócoras. E o senhor, devagarinho, afinal anda mais rápido do que um carro.

Não acreditas? Tão relativo é o tempo entre mim e o senhor engessado. Tão diferente.

As noites passam a correr. São sete horas de noite e, oh, passou a correr. E os dez minutos, quinze minutos, meia hora, há 45 minutos à tua espera, QUARENTA E CINCO MINUTOS! E não vieste. Não respondeste. Estás distante.

Tão relativo é o tempo quando estás distante.

Subo as escadas dois a dois. Subo rápido. Dois a dois é rápido para quem vê. E ainda falta. Ainda falta. Só mais um. Bolas, Só mais um. Bolas. É só mais um.

Tenho uma hora de almoço. Apanho o metro, saio para comer, tenho meia dúzia de coisas para comprar e umas capas para pôr nas botas; o homem é bom. Quanto tempo dura uma hora se tiver um prato de sopa, uma sala vazia, sem jornal, sem um livro, SEM TELEMÓVEL (é muito importante não ter telemóvel para medir o tempo)... Quanto tempo dura uma hora? e então comer uma sopa demora mais do que sair, almoçar, passar no sapateiro e fazer umas compras. Verdade?

Demora mais tempo.

Vens buscar-me cedo? Sim, para mim é cedo. Olha para mim é tarde. Vim o mais rápido que pude. Demoraste. Deixei um trabalho a meio. Fiquei sozinho na sala. A correr. Parado. Vamos depressa, São quase oito da noite, pá.

Da tarde.
Se vires bem o céu, são quase oito da tarde.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

a pedra.

Havia uma oliveira no fundo do vale que não era dali. Estava na beira da estrada, na beirinha, não incomodava ninguém. Ou incomodava? Levaram-na para o fundo do vale. Ninguém perguntou à oliveira se podia ser. Mas claro que podia.

Claro que pode. Passe-passe.

Foi assim. Queres saber, não queres? A estrada precisou de ser alargada, desculpa mas precisamos de espaço. E então levaram a oliveira, raízes e tudo, e puseram-na ali. Agora os carros já podem passar.

Passe-passe.

Agora já cabes. A oliveira do fundo do vale, que não era dali, estava naquele lugar, na faixa da esquerda, e os homens da carrinha vieram e escavaram. Foram máquinas que os homens trouxeram que escavaram à volta das raízes da oliveira que está no fundo do vale, e que a levaram para ali.

No lugar da oliveira, puseram uma pedra. Assim como três pontinhos, uns agrafos, uma cicatriz, vamos lá tapar o buraco. Puseram uma pedra sobre o buraco à beira da estrada. Um marco sobre a terra revolta onde a oliveira vivia antes de se ter mudado. Havia uma estrada estreita demais e uma oliveira a mais na estrada estreita. E agora há uma pedra desse lado da estrada. E a oliveira, estreitando-se para caber na máquina que a trasladava, já se tinha estreitado para ver se os carros passavam sem terem de a tirar dali. Sabias?

Vejam lá, experimentem só. Vejam lá se dá para eu ficar.

Depois calou-se. Deixem estar. Foi levada, raízes e tudo ao pendurão, foi levada para o meio do vale. Havia homens, mulheres, tantas pessoas a gabar o tamanho das raízes da oliveira a ser levada para o meio do vale. Nem imaginas! Ó vê-me isto. Forte, esta oliveira, tão forte. Havia homens, mulheres, tantas pessoas a dizer que ali no vale é que a oliveira da berma da estrada ficava bem. Tão bem que ficava.

Passe-passe.

Tão pouco tempo para criar raízes, e a oliveira já pertencia ali. A sério; estou-te a contar. Todos diziam, homens, mulheres, tantas pessoas, todos diziam que a oliveira das raízes grandes ao pendurão que estava na berma da estrada, naquele ponto marcado pela pedra, naquele marco, agora, sempre pertencera ali. E a oliveira, do fundo do vale, com raízes enterradas a ganhar terreno e as folhas a procurar sol, conseguia ver a estrada em cuja berma pertencia.

Vê-se daqui. Era ali. Naquele marco. Era longe ainda, mas foi assim. E queres saber? Cada dia que passava ficava mais longe. Ou parecia.

A cicatriz vê-se daqui.

sexta-feira, 17 de abril de 2015

ledo burma road.

E, então, ele disse: 

«Era uma imagem fantástica, mas que não seria a forma mais inteligente de fazer aquele percurso. A vida é mesmo assim. Depois, descobri nesta segunda imagem o atalho dos "espertos"... um caminho estreito e íngreme até ao topo. De alguma maneira, temos duas visões da mesma viagem: a ocidental (a linha estreita, íngreme e dolorosa) e a oriental (sinuosa, longa, mas suave na subida).

Mais importante do que os locais ou os objectivos a atingir, são os percursos/modos/viagens que fazemos para lá chegarmos. E convém não esquecer que a estrada funciona dos dois sentidos.»


quarta-feira, 15 de abril de 2015

check-up.

Tiro a camisola e descalço-me, a ver se o coração está bem. Ploc. Ploc. Ploc. Bu-bum. Pode vestir.

Olho as formas dos calcanhares das meias quando as visto. Novas a estrear, e nunca mais serão as mesmas.

Posso continuar a usá-las, claro. Lavá-las e usá-las outra vez. Lavá-las e usá-las outra vez. Casá-las, enrolá-las, ver que têm um buraco, dar-lhes um nó até coser o buraco – bem, já ninguém cose buracos.

Por vezes, as meias novas duram uma só vez, e logo deixam de se poder usar. Passam de novas a velhas num dia só. Aquela unha, aquele sapato, este material que não presta. Lixo.

Nem sempre é fácil perceber a qualidade das meias a olhar para a embalagem. Umas meias caras podem não valer nada afinal. Além disso, o encanto das novas esvai-se na primeira lavagem. Já não se sente o mesmo, um borboto, uma das duas a fugir para outra máquina qualquer. Bolas. Um branco-rosa. Bolas. Um branco-sujo. Nem a lixívia resolve. Nem com lixívia.

Casamos as meias uma e outra vez até ao dia em que ficam desirmanadas. É a altura de as deixar ir. De as mandar embora. Mesmo quando as calçamos, por serem só uma sem par, não servem para nada. Acabou.

Bom colesterol elevado, açúcar baixinho, funções do fígado impec, raio-x tudo bem. Bu-bum. «Sabe que mais? Tem o coração pingado.»

Eu sei.

broken crayons still colour.


terça-feira, 14 de abril de 2015

jorge luis borges

Después de un tiempo, uno aprende la sutil diferencia entre sostener una mano y encadenar
un alma, y uno aprende que el amor no significa acostarse y una compañía no significa
seguridad, y uno empieza a aprender...
Que los besos no son contratos y los regalos no son promesas, y uno empieza a aceptar sus
derrotas con la cabeza alta y los ojos abiertos, y uno aprende a construir todos sus caminos en
el hoy, porque el terreno de mañana es demasiado inseguro para planes... y los futuros tienen
una forma de caerse en la mitad.
Y después de un tiempo uno aprende que si es demasiado, hasta el calor del sol quema. Así
que uno planta su propio jardín y decora su propia alma, en lugar de esperar a que alguien le
traiga flores.
Y uno aprende que realmente puede aguantar, que uno realmente es fuerte, que uno
realmente vale, y uno aprende y aprende... y con cada día uno aprende.
Con el tiempo aprendes que estar con alguien porque te ofrece un buen futuro significa que
tarde o temprano querrás volver a tu pasado.
Con el tiempo comprendes que sólo quien es capaz de amarte con tus defectos, sin pretender
cambiarte, puede brindarte toda la felicidad que deseas.
Con el tiempo te das cuenta de que si estás al lado de esa persona sólo por acompañar tu
soledad, irremediablemente acabarás no deseando volver a verla.
Con el tiempo entiendes que los verdaderos amigos son contados, y que el que no lucha por
ellos tarde o temprano se verá rodeado sólo de amistades falsas.
Con el tiempo aprendes que las palabras dichas en un momento de ira pueden seguir
lastimando a quien heriste, durante toda la vida.
Con el tiempo aprendes que disculpar cualquiera lo hace, pero perdonar es sólo de almas
grandes.
Con el tiempo comprendes que si has herido a un amigo duramente, muy probablemente la
amistad jamás volverá a ser igual.
Con el tiempo te das cuenta que aunque seas feliz con tus amigos, algún día llorarás por
aquellos que dejaste ir.
Con el tiempo te das cuenta de que cada experiencia vivida con cada persona es irrepetible.
Con el tiempo te das cuenta de que el que humilla o desprecia a un ser humano, tarde o
temprano sufrirá las mismas humillaciones o desprecios multiplicados al cuadrado.
Con el tiempo aprendes a construir todos tus caminos en el hoy, porque el terreno del
mañana es demasiado incierto para hacer planes.
Con el tiempo comprendes que apresurar las cosas o forzarlas a que pasen ocasionará que al
final no sean como esperabas.
Con el tiempo te das cuenta de que en realidad lo mejor no era el futuro, sino el momento
que estabas viviendo justo en ese instante.
Con el tiempo verás que aunque seas feliz con los que están a tu lado, añorarás terriblemente
a los que ayer estaban contigo y ahora se han marchado.
Con el tiempo aprenderás que intentar perdonar o pedir perdón, decir que amas, decir que
extrañas, decir que necesitas, decir que quieres ser amigo, ante una tumba, ya no tiene
ningún sentido.
Pero desafortunadamente, solo con el tiempo...

sábado, 11 de abril de 2015

a relva.

Estou a sonhar contigo quando vais embora. Fica. Vá. Ficamos aqui a passear.

Gosto da biblioteca. Gosto tanto. Há um silêncio, um respeito. Parece que entrámos numa igreja, de mão dada, chiu. Para casar, porque não?

Cá fora a oliveira. Lembras-te de quando viemos aqui juntos? Árvore notável, 1500 anos. Olive tree. E fotografámos. Tirámos tantas fotografias. Eu tiro fotos a mais. Mas depois gostas, não é? São a mais, sempre a mais, sempre a mais. Boas, as fotos.

Há uma hera presa a um muro. E fotografo. Hortênsias a conviver com heras. E fotografo. Árvores vergadas. Foto. Raízes expostas. Foto. No restaurante olham para nós porque trazemos relva nas calças. Sorrimos. Pudim de pão. Natas do céu. Para mim é só uma salada. Riso, sim. Tens a certeza de que é só uma salada?

Faz duas horas que aqui andámos e parece que é a primeira vez. Os passeios para esmoer os doces. Foi só hoje.

Na primavera há uma bebedeira de aromas. Aqui, o cheiro a terra entranha-se-nos nos olhos e vê-se por todo o lado onde pinga, onde ganha cor com o fim destes dias de chuva. Neste jardim onde andamos tu e eu, paramos. Foto. A ti e a mim. Aos dois. Agora aí. Aqui.

Eu a sonhar contigo e vais embora. Bah. Então agora é que vais embora?

Não era um sonho. Estou mesmo aqui.
(Olive tree, Serralves, 2015)

terça-feira, 7 de abril de 2015

da nossa humanidade.

A vergonha de falar em fezes pode matar. A peça do Público de ontem diz que há onze portugueses a morrerem de cancro colorretal todos os dias, porque há quem morra de vergonha de falar nisso.

Credo. Falar em cocó com o médico.
Credo. Olhar para o cocó.
Credo. Levar o cocó para análise.
Credo. Sugerir ao médico que mande fazer um exame porque dói a fazer o cocó.

Ca nojo.

Há vírus que passam entre amantes porque há quem morra de vergonha de falar nisso. Hepatite. Sida. Ah nem pensar. Herpes genital? Ca nojo. Verrugas no sexo? Ca nojo. Ah eu cá não. Ah eu cá não.

Ca nojo.

Morro de vergonha de ser impotente. Morro de vergonha de ser incontinente. Sou incontinente. Sabes?

Ca nojo.

O relatório fala em quisto e pede vigilância. Uma mancha. Uma luz. É melhor não falar nisso, morro de medo. Entro no metro e ela tosse. Eu se fosse a ti ia ver isso. Entro na caverna e ela tosse. O quisto. Vou de viagem numa caverna com tosse. Tosse, cospe, engole. Isso do quisto.

Ca nojo.

Uma tosse e tosse e tosse. Uma tosse e tosse e tosse. Uma mulher roxa a tossir os pulmões. Uma tosse e tosse e tosse. Eu se fosse a ti ia ver essa tosse. Uma mulher a cuspir os pulmões. Os pulmões da mulher liquefeitos. Sai.

Credo. Os pulmões da mulher no passeio.

Ca nojo.

segunda-feira, 6 de abril de 2015

tira-teimas

Sorriso audível das folhas
Não és mais que a brisa ali
Se eu te olho e tu me olhas,
Quem primeiro é que sorri?
O primeiro a sorrir ri.

Ri e olha de repente
Para fins de não olhar
Para onde nas folhas sente
O som do vento a passar
Tudo é vento e disfarçar.

Mas o olhar, de estar olhando
Onde não olha, voltou
E estamos os dois falando
O que se não conversou
Isto acaba ou começou?

Fernando Pessoa

terça-feira, 31 de março de 2015

o quintal.

Aqueles sempre foram degraus a mais para uma mulher que sofria tanto das pernas. Havia duas entradas. Depois da porta da rua, verde com uma maçaneta com uma mão dourada, tínhamos dois andares de degraus de madeira feitos à mão – só podiam ter sido feitos à mão, de tal maneira eram desiguais e toscos e altos – até chegar à porta de casa propriamente dita. Depois dessa porta, com o bengaleiro, havia mais uma encosta de escadas que se trepava a arfar até se alcançar o início de um corredor de curva e contracurva que dava acesso ao quintal.

Também se podia entrar pelo quintal para aquela casa. Depois daquela porta verde, com a tal maçaneta da mão dourada, naquela rua de Fafel, podia subir-se um andar só, e sair para o quintal. Havia um quintal atrás daquela casa onde a avó morava. Nele, víamos o fogo da Senhora dos Remédios quando em Setembro os tios do Porto vinham comer o pão de ló molhado e o manjar branco. No intervalo do fogo, entre as duas sessões, íamos à sala beber o chá e comer o pão-de-ló. Fazia sempre vento naqueles dias, um ventinho, uma aragem que obrigava a forrar as quatro paredes do quintal com cobertas e mantas velhas, daquelas que há séculos não serviam para nada que não fosse forrar paredes de ar. Fraquinho o fogo este ano. Cada ano mais fraquinho o fogo.

Depois de sair para o quintal tínhamos de subir mais dois lances de degraus de pedra e entrar pela cozinha. Lá, a avó a passava a sopa de cenoura com a varinha mágica na única tomada que havia naquele espaço – era preciso desligar o frigorífico para passar a sopa na tomada. Gostava muito daquela avó quando era pequenina, chamava-a madrinhinha quando no Domingo de Ramos ia ter com ela com as flores, e ela gostava tanto das flores que sempre lhe levava. Havia doces em casa daquela avó. Ao almoço, ao lanche. Quando estava no quintal a brincar com as panelinhas e as flores e a avó chamava para o lanche, eu já sabia que ia comer doces.

Naquele quintal, nas traseiras daquela casa, havia vasos com plantas, cactos a que arrancávamos as folhas grossas com cujo suco riscávamos as paredes de cimento, e fazíamos desenhos que desapareciam quando os muros secavam. Havia outras flores, cravos talvez, sei que havia outras flores porque tantas vezes era preciso agarrar naqueles regadores de metal e ir regar as flores que havia no quintal.

Não dizíamos que íamos para o quintal, e íamos para lá tantas vezes. Não. Dizíamos que íamos para o terraço. E às vezes estava tanto calor naquele terraço, que não nos deixavam ir para lá. E aquele terraço, no quintal, nas traseiras daquela casa, no terceiro andar daquele prédio daquela rua, deitava para a casa da dona Conceição, que tinha gatos. Contava a avó que tempos havia em que a dona Conceição tinha recebido uma amiga, família talvez, de Espanha, que ficava longe-muito-longe, que chegava à porta para cujas traseiras o quintal da minha avó deitava e gritava: “Concépecióne!” Dizia a minha avó que não se percebia nada do que a senhora dizia quando chamava a vizinha assim mesmo: “Concépecióne!”

Ia jurar que, pela maneira como a avó falava, Espanha era longe-tão-longe que nunca lá poderia chegar. Se eu lhe contasse, juro avó, se eu lhe contar, a avó não acreditaria. Faria aquele ar espantado de quando a pusemos a falar com o tio de Aveiro naquele telemóvel sem fios nem nada e onde tudo se ouvia como no telefone. Louvado seja deus, dizia ela, face às novas tecnologias. Deus seja louvado.

Verdade. Afinal, Espanha fica mesmo aqui ao lado.