Carlos Lopez, um miúdo doido por parkour, estava hospedado num quarto de hotel em Lisboa quando tentou saltar da sua varanda para uma outra, no prédio contíguo. Quando se embalou, deu balanço e se lançou, teve a certeza, estava seguro, de que conseguiria. Morreu. Tinha 25 anos.
Quando agarramos o volante dos nossos carros, rodamos a chave e carregamos na embraiagem, dificilmente nos apercebemos do perigo. Guiamos máquinas que matam e quando aceleramos temos a certeza, estamos seguros, de que nada acontecerá. E às vezes batemos, despistamo-nos, atropelamos, matamos. Mesmo a cinquenta à hora, matamos. Credo, matámos.
A proximidade com o mundo dos carros faz-me pensar nisto. Fala-se em velocidades loucas como quem come uma maçã ao volante, nos testes acelera-se até aos 100 e trava-se a fundo, sem medo, como se nunca desse medo travar a fundo, e o carro nunca soluçasse e nunca se engasgasse quando travamos a fundo e temos um tipo à frente. Sim, na vida real ou temos um carro ou um tipo à frente, um rail ou um poste, ou uma mãe com um filho, ou dois filhos. Fala-se em conduzir sob chuva, sobre piso molhado, em aquaplaning e o diabo a quatro, diz-se para travar sem medo, mas não se fala do pavor que dá travar a fundo quando estamos na iminência de atropelar alguém. E não acredito que os tipos com quem trabalho não tenham esse medo. Os tipos e as tipas.
Um dia resolvi fazer uma sardinha com dois metros e 1500 hexágonos cosidos à mão. Quando me apercebi de que estava atrasada, de que não ia conseguir, já não dava para travar, para voltar atrás. Tinha de manter o impulso, tentar alcançar a varanda, esticar-me, esforçar-me, chegar lá. Cheguei. E tive medo de não chegar, claro que tive medo de deitar 1000 hexágonos ao lixo. O que é que te passou pela cabeça, pá?
Quando o Henrique nasceu, e passou o primeiro ano, o segundo ano, o terceiro ano a dormir mal, achei que não conseguia também. Na consulta do sono, diziam para não nos preocuparmos, que ele estava óptimo, saudável, bem-disposto. Era só um miúdo que dormia pouco. Está bem, ele pode estar óptimo, mas e nós? Mas não havia alternativa, claro que não havia opção. Era esperar que ele aprendesse o gosto de dormir. Já tínhamos tentado tudo, e agora era esperar. Tínhamos saltado e agora não havia alternativa. Era esperar que ele chegasse lá. E, mesmo com medo de não conseguir, tínhamos de aguardar, aguentar, até ver se sim, se sopas, pumba!, se caíamos de cansaço ou se sobrevivíamos. Que exagero: falar em morrer de sono, ninguém morre de sono. Ou morre?
Se pudesse não conduzir, não corria esse risco. Ia ao lado, guiada por quem sabe. Infelizmente não tenho opção. Pouca gente adulta e consciente tem. Resta-nos o livre arbítrio. A responsabilidade. A decisão.
Pois não, já não estou a falar de carros.