quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

os pedais.

Carlos Lopez, um miúdo doido por parkour, estava hospedado num quarto de hotel em Lisboa quando tentou saltar da sua varanda para uma outra, no prédio contíguo. Quando se embalou, deu balanço e se lançou, teve a certeza, estava seguro, de que conseguiria. Morreu. Tinha 25 anos.

Quando agarramos o volante dos nossos carros, rodamos a chave e carregamos na embraiagem, dificilmente nos apercebemos do perigo. Guiamos máquinas que matam e quando aceleramos temos a certeza, estamos seguros, de que nada acontecerá. E às vezes batemos, despistamo-nos, atropelamos, matamos. Mesmo a cinquenta à hora, matamos. Credo, matámos.

A proximidade com o mundo dos carros faz-me pensar nisto. Fala-se em velocidades loucas como quem come uma maçã ao volante, nos testes acelera-se até aos 100 e trava-se a fundo, sem medo, como se nunca desse medo travar a fundo, e o carro nunca soluçasse e nunca se engasgasse quando travamos a fundo e temos um tipo à frente. Sim, na vida real ou temos um carro ou um tipo à frente, um rail ou um poste, ou uma mãe com um filho, ou dois filhos. Fala-se em conduzir sob chuva, sobre piso molhado, em aquaplaning e o diabo a quatro, diz-se para travar sem medo, mas não se fala do pavor que dá travar a fundo quando estamos na iminência de atropelar alguém. E não acredito que os tipos com quem trabalho não tenham esse medo. Os tipos e as tipas.

Um dia resolvi fazer uma sardinha com dois metros e 1500 hexágonos cosidos à mão. Quando me apercebi de que estava atrasada, de que não ia conseguir, já não dava para travar, para voltar atrás. Tinha de manter o impulso, tentar alcançar a varanda, esticar-me, esforçar-me, chegar lá. Cheguei. E tive medo de não chegar, claro que tive medo de deitar 1000 hexágonos ao lixo. O que é que te passou pela cabeça, pá?

Quando o Henrique nasceu, e passou o primeiro ano, o segundo ano, o terceiro ano a dormir mal, achei que não conseguia também. Na consulta do sono, diziam para não nos preocuparmos, que ele estava óptimo, saudável, bem-disposto. Era só um miúdo que dormia pouco. Está bem, ele pode estar óptimo, mas e nós? Mas não havia alternativa, claro que não havia opção. Era esperar que ele aprendesse o gosto de dormir. Já tínhamos tentado tudo, e agora era esperar. Tínhamos saltado e agora não havia alternativa. Era esperar que ele chegasse lá. E, mesmo com medo de não conseguir, tínhamos de aguardar, aguentar, até ver se sim, se sopas, pumba!, se caíamos de cansaço ou se sobrevivíamos. Que exagero: falar em morrer de sono, ninguém morre de sono. Ou morre?

Se pudesse não conduzir, não corria esse risco. Ia ao lado, guiada por quem sabe. Infelizmente não tenho opção. Pouca gente adulta e consciente tem. Resta-nos o livre arbítrio. A responsabilidade. A decisão.

Pois não, já não estou a falar de carros.

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

o ribeira.

À porta estava o Jorge. Passava-se um corredor espelhado que comia aí uns bons dez passos. Trepavam-se dois andares de degraus de madeira, escadas íngremes, dignas das casas de uma rua antiga como é aquela. Quanto menos tempo tínhamos, mais depressa subíamos e vencíamos os barcos e as cordas e o mar pintados nas paredes. O corrimão macio, de madeira envernizada, podia levar-nos mais acima, mas nem o primeiro andar interessa nem o terceiro faz parte da história, portanto ficamos por aqui: pelo segundo piso.

O dono era o senhor Mário, um homem orgulhoso da ousadia de plantar um espaço daqueles no centro da cidade. Um bar com motivos náuticos por todo o lado, onde muito apetecíveis eram os individuais, aquelas salinhas sem portas com aquários e peixes nas paredes. Um bar com um sofá à altura dos ombros, onde nos sentávamos à espera da nossa vez para jogar às setas. Atrás do balcão, a Sílvia, o Areosa. Sim, sim, calma: eu sei que houve mais gente a estar atrás daquele balcão; o próprio senhor Mário era o que mais lá estava; mas gosto de quem vive aqui no meu DVD; portanto, neste momento, só vejo esses dois. Dentro do barril, o Machado. Idem aspas para o Machado dentro do barril a pôr música no meu DVD.

No corredor que ligava as duas portas das casas de banho, havia desenhos na parede. Era para lá que fugíamos quando queríamos confidenciar as nossas confidências, reclamar as nossas reclamações e chorar os nossos choros.

Íamos ao Ribeira nos furos, à noite, aos fins de semana, aos feriados. Estávamos sempre no Ribeira. Só não dormíamos no Ribeira porque éramos teenagers inconscientes, tínhamos família e essa gente toda que se preocupava connosco, e aquela coisa fechava, além de que os nossos pais já engoliam uns quantos sapos para nos deixar ir para lá, e pelo sim pelo não era melhor não esticar a corda.

Durante anos aquele foi o ponto de encontro, o refúgio, o sítio onde sempre estavam os amigos, onde estávamos todos. Lá divertimo-nos, apaixonámo-nos, zangámo-nos, chorámos (não é lamechice, éramos miúdos, e crescer custa bastante, portanto para que conste, chorei na proporção idêntica à do riso).

A música era Abrunhosa, Pixies,  U2. GNR, This Mortal Coil, Sting. Sétima Legião, James, Smiths. Estávamo-nos a marimbar se ficava num segundo andar feito de madeira com velas nas mesas e cigarros nas mãos. Às vezes, tantas vezes, fecho os olhos e ainda ouço isto: https://www.youtube.com/watch?v=Ew7Zkkucos8.

Sit down.

perspetiva.

O Herman dizia: "Ai, moça, com um cabelo louro tan bonito, tinhas de te lembrar de pintar as raízes de preto."
Bem, eu não tenho as raízes pretas; são grisalhas. Ah, bem sei: esta é daquelas coisas que mulher que é mulher não põe por escrito. Mulher que é mulher não arranja as sobrancelhas, já as tem alinhadas e contornadas; não se depila, "quais pêlos? Eu não tenho pêlos!"; pinta o cabelo para ter mais brilho, não porque precise.
Er.... pronto, eu não sou assim, vim com defeito. De maneira que deixei de pintar o cabelo, e todos notam. De repente, do nada, recebo mensagens de incredulidade, "Mas porquê?!", conselhos, "Porque não pintas em casa?", ultimatos, "Se não cortas curto, vai ser muito difícil...", e sigo em frente.

Há muitas razões que podem levar uma mulher a deixar de pintar o cabelo. Independentemente de quais forem, não é fácil, nunca é fácil passar a fase de aparente desleixo com orgulho na auto-estrada que vai surgindo na cabeça, não. Como em muitas outras situações da vida, às vezes apetece desistir, entrar no primeiro cabeleireiro e pedir para nos devolverem os anos, o aprumo, o cuidado que transparecíamos. Não se pense que é fácil para uma mulher. Durante aqueles três, quatro anos, desejamos que a fase passe, que o cabelo branco apareça de uma vez, "arranca de uma vez esse penso sobre os pêlos do braço, arranca!".
Tal como aqueles carros que passam ao nosso lado num dia de chuva, isto não cai bem, splash!, deixa-nos enlameadas, com a reputação manchada, não é comum.
Mas, que fazer? Gosto do tamanho do meu cabelo, e não é algo por que tenha de pagar a cada quatro semanas, não é algo que me enfraqueça a raiz.
Felizmente, de vez em quando, há quem nos dê a volta e nos desarme. Alguém que vê além das aparências, do comum, do imposto:

"Olha, tens o cabelo loiro! E, olha, em baixo é castanho, não é? E aqui junto à cabeça é branco. Tens três cores, não é? Que lindo, mamã."

Lindo és tu.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

sinais.

Seis centímetros de indicador batiam, toc-toc-toc, na montra de vidro, e os olhos que olhavam para o "café corto" que eu bebia pediam um donuts estragado. Quer dizer: nenhum de nós sabia que o bolo não estava bom, mas a verdade é que se tratava de um donuts estragado. Paguei o bolo estragado e dei o bolo estragado ao miúdo, que comeu o bolo estragado, a meio perguntou se eu não queria um pouco de bolo estragado e cinco horas depois vomitou o bolo estragado. 

Quando o mais velho era pequeno, um dos oftalmologistas que o seguiam proibiu-o de jogar à bola (não podia correr o risco de receber uma bolada na tola), de andar de carrinhos de choque (o impacto podia ser fatal para o que restava da sua visão), de fazer o pino, etc., etc. Quem olha para ele agora não acredita que o meu João já foi gordito, já odiou desporto, não sabia a resposta a perguntas simples como o que queria ser quando fosse grande ou o que gostava de fazer nos tempos livres.

A primeira vez que nos pediu algo, pôs-nos nas mãos uma decisão difícil. Ele queria jogar goalball, e era mesmo isso que queria. E, não obstante tratar-se de uma modalidade em que apanhar boladas e sofrer impactos faz parte do jogo, demos por nós a ir buscar a balança.

O goalball representou para mim o início da mudança. Lentamente começou a aparecer interesse em algo, surgiu motivação, realização e, mais importante que tudo, valorização pessoal, um salto de gigante em defesa da auto-estima subestimada.

Não foi uma decisão fácil. Os primeiros treinos eram de uma violência atroz... para nós. Lembro-me de ver o primeiro treino de defesa, posição deitado de lado, ancas no chão, braços esticados e olhos vendados, e de o treinador ordenar o início dos tiros. A bola de goalball pesa tanto ou mais do que uma bola de básquete, e era lançada em força contra os abdominais dele, que se entesavam para defender e ganhar calo, enquanto eu saía disparada para o balneário, a fugir daqueles murros no meu estômago, a ver as lágrimas cair de uma assentada e a questionar o meu papel de mãe.

Entretanto, passaram seis anos e eu mudei, e ele mudou. Há uns três anos que a hipótese de ele sair do país para estudar apareceu. Há dois anos que fala maravilhado do apoio dado ao goalball em Espanha. Há um ano acordámos deixá-lo partir.

Nem sempre tomamos as decisões acertadas em relação aos nossos filhos, e há consequências graves de decisões mal tomadas. 

As decisões bem tomadas também têm consequências, felizmente boas. E são essas que nos dão força para lutar, para não desanimar, para trabalhar mais para ter mais dinheiro. 

Mais tarde, o pequenito acabou por me dizer que o donuts nem lhe tinha sabido bem, mas que não sabia que, tendo-o pedido, o poderia recusar. E então expliquei-lhe que somos sempre livres dizer que sim ou que não, independentemente do que nos aconselham. Acertar ou não é uma questão de sorte. E de estar atento aos sinais.

domingo, 28 de dezembro de 2014

ema.

Não se pergunta a idade às senhoras, mas tem histórias para duas centenas de anos. De quantas páginas precisaremos para as escrevermos a todas?

Zangada com os cabelos brancos que caem, tira o chapéu e mostra. Depois, olhos molhados, daqueles que já não fixam, que tanto choram a rir com o neto rabino como a sofrer de saudade, fica a olhar no vazio e deixa despontar um ponto negro de acne na cara enquanto se queixa da idade.

Não será adolescente, mas não sei quantos anos tem. Uns duzentos talvez.

Deseja viver muito mais, não quer deixar de ver os netos crescer. Gaba as meninas que estão umas mulheres e se fizeram tão bem (não, os meninos não é a mesma coisa). Volta e meia anda limpar o chão da rua com o rabo, rasteirada pelo sebo de uma folha de outono no passeio encerado junto aos contentores do lixo. Vale-lhe quem passa e a acode, e a capacidade que sempre tem de se recompor depois de cair, depois de vir abaixo, e tantas vezes a vida a mandou abaixo, como o sebo do chão.

Verdade que o corpo demora mais a recompor-se agora do que aos vinte, mas, como não se pergunta a idade às senhoras, não posso alongar-me sobre a evolução da coisa pelo tempo fora. Imagino que seja mais velha do que isso, que tenha mais do que trinta, mais do que cinquenta. Cai e lá se levanta, da mesma forma que cada dia cola os cacos do coração partido pelo marido que a deixou sem ela estar pronta.

Conta a história uma, duas, três vezes; esquece-se do que já falou e volta à mesma novidade e repete-a, sempre com encanto, como se fosse a primeira vez. É capaz de enumerar pormenores, sons, jeitos dos miúdos (putos que ainda só não lhe deram bisnetos porque não calhou), da mãe com pêlo na venta que era tão parecida com ela, do pai que morreu cedo debaixo de um trator. Lembra avós e tios e primos que lá ficaram na aldeia onde havia mais sete com o nome dela, mas onde agora são só duas. Declama poemas e sabe o autor, enquanto se lamenta dos olhos estragados e dos óculos que já só funcionam assim, e ergue as armações para explicar como, juntando as lentes ao centro da pupila para focar melhor.

Duzentos anos pesam na coluna, que arqueia um pouco, e nos ossos, que já doem. Depois dos sessenta os ossos doem, daí que suspeite que tenha mais do que isso. Mas, bem, não sei: não se pergunta a idade às senhoras.

Para a receita do ben-u-ron e das outras drogas que toma, tem de pagar três euros por consulta no Centro, pois que antes era isenta e agora já não. Depois dos setenta, dos setenta e cinco, já não é isenta, agora tem de pagar. Traz na mala uma caixa para os comprimidos; um para o colesterol, um para o sangue, um para dormir (“a médica mandou tomar dois inteiros, mas eu só tomo meio”), mais um para isto, mais um para aquilo.

Fala dos filhos como se continuassem a precisar dela como em bebés, como se andassem às cavalitas uns dos outros e ainda pregassem partidas com bichos à mãe, a esta mãe que tinha tanto medo de bichos e agora não parece ter tido medo de nada.

Sim, não lhe dou menos de duzentos anos. Ela já deixou de contar, portanto não dá para saber. Além disso não se pergunta a idade às senhoras.

De quantas páginas precisaremos para escrever duzentos anos de vida?

Bem, há coisas que não se perguntam.

defeitos.

Querida rtp,

Fui revisora durante uns tempos. Por deformação profissional, agora, revejo até os guiões dos sonhos. Foram muitos anos, sabes?

Por vezes, odeio-me. Detecto os erros ortográficos e os espacinhos-a-mais nas placas das auto-estradas, fico presa ao “fostes um bom homem” dos elogios fúnebres, ao “há-des ser feliz” das amigas que nos confortam, às legendas dos filmes em que o protagonista relata a emoção de finalmente encontrar o diário da mãe falecida (“não se desfolham os diários, pá.”). Nos livros, quando engancho numa frase mal escrita fico sem perceber páginas inteiras. Já deixei de ler autores supostamente fenomenais por causa disso: incomoda-me; não há nada a fazer, não são nada fenomenais, incomodam-me. Ponto. Fico ali com o balão da BD pendurado com a frase mal escrita até que agito a cabeça (tal-qual uma lata de spray quase vazia a precisar de ser usada para limpar o pó) e lá desengancho da coisa.

Por vezes, é absolutamente desconcertante. Até porque nos meus “panos” (por opção, pode ler-se “livros”, “revistas”, “textos como este”) passa a vida a cair a nódoa, e mesmo assim não tenho emenda. Um exemplo: era revisora havia pouco tempo quando deixei passar, num editorial de uma revista, escrito pelo director, um “Ouve vezes em que o fizemos.”. Quando me apercebi – revista na mão, impressa, já não podia apagar – fui pedir desculpa (é outra das minhas qualidades: em vez de ficar caladinha, vou buscar o megafone para sublinhar a asneira.). Senti-me verdadeiramente incompetente, e, afinal, era só um agá o que faltava. Terei apanhado centenas de gralhas naquela edição, composto dezenas de estruturas de frases, reorganizado os textos, alertado para legendas incompletas. Contudo, não tinha corrigido “ouve” para “houve”, tinha deixado passar um erro crasso, a bold e em destaque, na página dois. E, não contente com isso, tinha ido mostrar: “Desculpe lá, senhor director; bem sei que isto é grave, mas estou aqui a pedir desculpa pela estroinice, se quiser fazer o favor de não me despedir… grata.”

Por alturas da faculdade, engracei com um moço que me escrevia. O coração batia mais forte sempre que regressava à terra. E, quando passava semanas sem ir – por vezes, muitas até –, lá recebia uma carta ou um postal a que respondia logo que conseguia. Uma vez, na volta do correio lá estava aquele remetente de que eu gostava. Sorriso, abri, li. Uma página, não mais: homem de poucas palavras. Mas isso que interessava. Mas isso que importava. Mas isso que… quÊ??! “Até seixta!”?? Tu não podes ter terminado isto com “até seixta”, pá. Não dá para acreditar. Estou a sonhar contigo há três meses. Seixta?!

Seixta.

Seixta.

Se calhar sou só eu, a tipa que dá erros mas descobre os erros dos outros. Sim, se calhar sou só eu, mas tinha mesmo de te dizer isto: HÁ TARDE é um péssimo nome para um programa de televisão. Gera a dúvida e induz centenas (pelo menos centenas) de donas de casa no erro. Mas serei só eu a pensar assim? A sério, serei só eu a achar isso? Eu, a comichosa? A sério, serei só eu?



- “O sol estava a pôr-se na Ilha Verde, e o Gombby dirigia-se para casa para dormi…”
- Olha lá, mas se o Sol estava a pôr-se, como é que está a ficar de noite?
- Filho, nós dizemos que o Sol está a pôr-se em alturas assim como aquelas da praia, em que o Sol desaparece no horizonte.
- Ah.
- “E então ele disse: este embrulho é para o professor, não te importas de lho levar, pois não? Claro que não, levo-lho com tod…”
- Claro que não, levo-lho? Então diz que não, e leva?!

...

sábado, 27 de dezembro de 2014

amor.

O perfume que se adapta ao teu cheiro. A dose certa. O excesso certo. A camisa que condiz com o tom da pele. A malha rota, o vinco das calças.
A barba. Sem barba. Com. Sem. A saia curta, comprida, pelo joelho. Acima do joelho. A mostrar o joelho. A tapar. Vou tapar.

Os olhos grandes dela, o olhar negro, as amêndoas no olhar azul, os olhos brancos, os olhos cegos, o olho de vidro, olhar no vazio.
O toque e a atração, o abraço, a distância, o homem sem um braço no meu espaço. Salto alto espetado no ar, sabrina que rasa, mulher pequenina com homem grande, mulher grande com homem grande. Mulher com mulher.

E o mesmo cheiro, os perfumes, os laços e os abraços. A faisca do carro que choca e do beijo na boca.

O frio lá fora. Chuva, frio. Aqui no metro uma brasa.

o ouro.

“Há três presentes que não se embrulham. Sabias? Disseram lá na creche. São os beijinhos e são os abraços.”

“Então qual é o outro? Isso são dois, não são três.”

“Ah, deixa ver. É o ouro. É-é. O ouro também não se embrulha: disseram lá na creche.”

“Pensa lá bem, se calhar não é bem o ouro.”

“É-é. O ouro não se embrulha. Compraste prenda para ele? Podemos dar beijinhos e abraços. Disseram lá na creche. Achas que ele gosta? Lápis novos como? Onde? Também quero! Preciso, sim. Um conjunto de lápis, e canetas e lápis de cera e guaches dos Carros. A ele dou beijinhos e abraços. Falas com ele, não é? Com o Pai Natal. Ele tem mandado mails? Não me portei bem porque me dói o ouvido. Não digas isso. Não ouço bem e se não ouço não posso obedecer. É isso. Tomas banho comigo? Tapas o ouvido com algodão? Ai, magoaste-me, bruta! Oh, despes-te sempre primeiro, eu queria ser o primeiro a despir e despes-te sempre primeiro. Não quero beijinhos, larga-me. O que é que é isso? Tu não pões do meu creme? Agora podemos fazer aquilo do avião? Iauuum… Toca a sair os passageiros! Outra vez. Iauuuum… Sair os passageiros! Outra vez. Iauuuum!... Os passageiros a sair! Outra vez. Cansada porquê?! Oh, estás sempre cansada! Posso dormir na tua cama hoje? Larga-me, estás a esmagar-me o coração! Sabes que há meninos que não têm prendas. Eles só recebem beijinhos e abraços. São prendas que não se embrulham, percebes? Ainda há outra. Não me lembro, disseram lá na creche. Ah é isso, ainda agora te disse, ai mamã, é o ouro. É-é, disseram lá na creche. É isso: o ouro também não se embrulha.”

Talvez seja, de facto.
(Azenhas do Mar, 26/12/2014)

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

hitchcock.

O Wiki adora brincar com coisas sérias. Gosta de me acompanhar quando costuro enquanto ele corta os tecidos com uma tesoura das perigosas; gosta de limpar o pó e a banca; senta-se no sofá com uma pilha de livros e conta histórias a uma turma de meninos imaginários que vai mandando estar quietos, sentar, que põe de castigo, enquanto lê e mostra as ilustrações, de um lado… para o outro… de um lado… para o outro, para todos verem, como se fosse uma ventoinha.

Há três anos que brinca com a minicozinha do Ikea, a que fomos acrescentando acessórios à escala, depois uma panela a sério, uma escumadeira a sério e umas colheres de pau da minha gaveta, o meu funil, o meu sacode-saladas. Depois dos alimentos a fingir (de plástico e de tecido), juntámos comida seca (experimentámos água e vegetais de verdade, e a coisa não correu bem; um dia conto): grão, feijão, massas de variedades diferentes, arroz. Quando comecei a perceber que já não lhe bastava o seu microespaço, emprestadei-lhe o miniescadote, para ele chegar ao fogão, ao meu fogão, e passei-lhe a minha faca que corta mal mas não corta dedos. Hoje, aos cinco anos, já prepara massa e arroz (não os escorre, que não sou louca, mas sabe os passos todos – mexer um refogado, pôr a quantidade de sal, a dose certa de azeite, a pitada de pimenta), faz ovos mexidos com salsichas, grelha bifes, corta cogumelos e arranja as couves e os brócolos para cozer. Adora fazê-lo, e dá gozo filmá-lo com os olhos. Claro que também gosta de brincar a tudo o resto: andar de bicicleta desde que vá à frente, fazer puzzles desde que alguém lhe descubra as peças que ele põe no sítio certo, jogar ao jogo da glória ou ao peixinho desde que seja ele a ganhar, construir pontes desde que o ajude, fazer uma cidade desde que eu esteja por perto.

Ao domingo, nunca sou muito rígida a obrigá-lo a arrumar o que desarruma. Quero que aproveite, é o último dia. À noite, quando regresso depois de o deixar com o pai, ponho tudo na prateleira certa, apanho os legos espalhados pela casa, acomodo os carrinhos para caberem dentro da caixa e sento-me em frente à cozinha dele. Pernas à chinês, separo os legumes a fingir das frutas a fingir, o pão a fingir do ovo, do bacon, das rodelas de pimento a fingir. Há um cesto para as frutas e outro para o pão, uma ceira para os legumes, um caixotinho para as latas com os legumes secos, uma travessa para as proteínas (peixe, ovos, fiambre, mortadela, salsichas)…

Começo por arrumar os miniguardanapos, a minipega e a miniluva no cesto. Ponho o miniesfregão ao lado da minibanca e atiro o meu pano da loiça a servir de tapete para a máquina de lavar. Feito isto, perco todo o tempo do mundo a separar o spaguetti partido aos bocadinhos do tagliatelli, o farfalle do grão, o feijão do arroz. Assim, na semana seguinte, quando ele chega, está tudo pronto para ser cozinhado outra vez.

Normalmente, é fácil separar as coisas nas latas. Exceto quando caem ao chão. Aí normalmente aspiro; como é só um bago ou outro, não me fico a sentir mal. Não há paciência para estar a apanhar um a um e, quando os arrastamos para facilitar a coisa, trazemos migalhas, cotão e cabelos, e infelizmente nem eu nem ele sabemos cozinhar com isso.

Há uns tempos, num jantar em que ele servia uma sobremesa feita com feijão cru, queijo de plástico, um ovo cozido de pano e umas massarocas de variedade diferente, foi perguntar a um dos meus amigos como se chamava aquela coisa que ele tinha na ponta do dedo: aquela coisa mexia e era uma minhoca. Sinal de alarme, luzes vermelhas, sirenes, em dez segundos as comidas a sério foram parar ao lixo, com a promessa de depois lhe voltar a encher as latas.

Quando fiz isso, tinha a avó dele, a minha mãe, a olhar para mim. Melhor, tinha dez, vinte metros de avó sobre mim, tinha uma avó gigante sobre a minha cabeça: eu pequenina lá no fundo a querer encher as latas até acima com massas, feijão, grão, arroz, e a mãe-censura, vulgo voz da consciência, a dizer “já chega, é comida a sério, ele estraga isso tudo”, e eu ripostava que não, assegurava-lhe que não, “acredita em mim”, que ele precisava de um abastecimento daqueles uma vez a cada três anos, e era só, e depois que eu lhe separava tudo, que não se preocupasse, aquilo dava para muito tempo.

Isto foi há duas semanas. No sábado veio perguntar-me se podia ir buscar o aspirador. Isto depois de eu ouvir, não queria acreditar mas tinha a certeza de que era isso, centenas de bagos de arroz e massas e feijão e grão a espalharem-se pelo chão. Entrei na cozinha em passo lento, como naqueles filmes em que o protagonista chega a casa e está a mulher morta atrás da cama, e comecei a aproximar-me da cena. A aproximar-me. A aproximar-me. Não fui capaz de aspirar. Estivemos a apanhar cada grãozinho e a voltar a metê-lo nas panelas e nas latas.
Não conto quanto demorámos. Nem sei. Nos entretantos, ele explicava como tinha tentado verter o conteúdo de uma panela grande para dentro de uma minicaneca, e de como inacreditavelmente não tinha cabido. E eu repetia: “Isto tem de dar para três anos, estás a perceber, Wiki?” E ele: “Amanhã depois damos um jeitinho”, olhos a brilhar pela antevisão da brincadeira, “damos um jeitinho com o aspirador primeiro, ou com a vassoura e a pá, e depois com a esfregona”.

E eu, rabo no ar, a pensar que as mães de dez metros têm sempre razão. E é verdade: sabem tudo, cozinham maravilhosamente e têm sempre razão.

(Publicado no meu facebook a 29 de outubro de 2014)

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

a boina.

Distinguir entre primeiras impressões certas e primeiras impressões erradas é uma arte que não domino. Basicamente, sou tão facilmente endrominada como sou surpreendida. Já aconteceu achar ser falsa uma pessoa que me deu a mão, já apostei tudo em relações que acabaram, já me desiludi, já fui inocente, já fui desconfiada, já dei uns quantos tombos. Não tenho jeito para isto, ponto final parágrafo. Eles


(ups, esqueci-me do parágrafo)


Eles andam por todo o lado. Na rua: “A senhora desculpe, olhe, por favor, posso ter um momento da sua atenção? Estou desempregado…” Na fila para comprar o passe: “A vizinha por acaso tem vinte cêntimos?” Na carruagem: “Quem tem a bondade e a possibilidade de me auxiliar?” Na Baixa: “Preciso de aviar esta receita para o meu filho que está doente.”

Poupem-me. Um destes dias uma amiga falava em como, saindo de casa mais cedo do que costume, apanhava os pedintes todos a “montar” as suas maleitas: a esconder a perna, a arregaçar a manga, a chegar direito a um semáforo onde depois se entortava e tremia com um copo de plástico na mão a pedir pela sua saúde.

Já me aconteceu dar dinheiro, por comiseração. Sim, já dei, porque acreditei de facto. Já dei porque queria ajudar. Eventualmente nunca saberei se fui ingénua ou não. Não interessa, já está. Também já dei o meu lanche. No metro, já dei as tostas a uma senhora que não disse que não, mas também não ficou contente. Já dei o meu almoço. Uma vez, na Praça de Espanha, ofereci a maçã que levava no saco. O senhor que pedia parou uns segundos, olhou para a minha mão esticada fora da janela do carro e perguntou se eu não tinha uma banana. Depois pediu desculpa, mas não servia. Agradeceu e sorriu: faltavam-lhe os dentes.

Em Lamego, quando era miúda, à porta da Sé estava sempre um pobre coitado, bêbedo – ou a parecer bêbedo, lá está, não sei avaliar –, com uma boina no chão, onde pingavam moedas à saída da missa. Durante anos, esse foi o único pedinte que me lembro de ver na cidade. De resto, havia pobreza, sim, como em todo o lado, estou certa de que havia miséria também, mas não havia mais pedintes do que aquele.

Saí para estudar em Lisboa, e fui daquelas que não voltaram. Que compraram casa fora, que se casaram, puseram os filhos a estudar, arranjaram emprego e contas para pagar, e agora só voltam à cidade nas Festas, na Páscoa (não há Páscoa como a nossa) ou no Natal. Nas poucas vezes que vou a Lamego, não suporto os pedintes desenquadrados da cidade que era a minha. Xô, desculpem, mas esta cidade não tem pedintes. Tinha um e já morreu. Esta cidade não tem pedintes em cada canto. Saiam da porta do banco, deixem as pessoas passear na Avenida, desamparem a loja. Há muitas cidades pequeninas por aí, por favor: é apanhar a carreira e ir para a terra ao lado, ok?

Ai é, ficam? “Deixá-lo”, como dizia a avó Hirmínia. Também, francamente, dou cada vez menos. Assim, pagam uns pelos outros, como na turma em que um faz asneira e ninguém se acusa. Desculpem, mas pagam uns pelos outros.
Na minha terra, como me lembro dela, não há nem megacentros comerciais, nem minipreços, nem lojas de chineses, nem sucursais de bancos em cada esquina, nem... pedintes. Não se assaltam carros, todos se conhecem e sinto-me segura. Na Avenida 5 de Outubro, ao lado da Caixa Geral de Depósitos fica o BNU, e a Rua de Almacave tem dois sentidos. Bem como a Rua do Teatro: subi-la, só em primeira. Que interessa se o Cinema Spock está fechado há anos: tenho cafés às mãos-cheias, amigos, memórias, tenho sempre onde ir.

Desconfiada, desconfiada… recordações à parte. É favor não estragar a gaveta onde guardo as coisas boas.

pensador.

O pai natal tem uma câmara, para ver se nos portamos bem, se nos portamos mal, se comemos a sopa.

O pai natal vê se subimos as escadas rolantes paradas, ou se damos meia volta para apanharmos as outras que mexem, só para irmos a brincar com o telefone. O pai natal fotografa a estátua rodiniana de chicha e osso encostada a fazer scroll down nas escadas que sobem.

O pai natal tem uma câmara. Sabe que levámos bolachas para o miúdo no parque e acabámos a comer umas quantas. Sabe que adoramos não ter fome. Não tenho apetite, e adoramos, dá uns pontos extra a quem é anafado e tem sempre vontade de comer. Sabe que dissemos que era só um quadradinho de chocolate e fomos ao frigorífico e tirámos dois. Uma tira. Duas. O pai natal aponta que tirámos duas.

O pai natal contabiliza com atenção os minutos em que não desligamos a água do duche, porque está quentinho, a saber tão bem, ensaboar-nos enquanto a água corre. Sabe que tomámos duche mesmo quando na televisão disseram para não. Sabe que reclamámos com a nuvem de vapor de água depois de um banho que durava há horas. Sabe que não, que nenhum banho durou horas. E sabe que não, que não somos donos da companhia das águas.

O pai natal filma, e sabe sempre que nos vestimos sem pôr creme no corpo. Quando calçamos as meias sem limpar entre os dedos dos pés. Quando nos deitamos tortos no sofá. Quando encorcundamos ao computador. Sabe que gostamos de nos sentar com o pé debaixo do rabo para comer os cereais de manhã. O pai natal tem uma câmara. Tem uma televisão em que nos vê. Sabe que temos hérnias nas costas e fotografa a perna cruzada quando estamos a entrevistar alguém.

O pai natal sabe que não vamos com a cara dela e depois lhe sorrimos. O pai natal sabe que voltámos para ele, sabe quando estamos felizes e achamos que nada importa. Sabe quando não estamos bem e mentimos e dizemos que não: triste? Não! Estou só a pensar… O pai natal sabe quando nos fechamos em copas e dizemos que andámos ocupados.

Sabe quando puxamos as orelhas à cama. Sabe quando a deixamos por fazer. Quando não limpamos em cima do armário nem debaixo da estante. Sabe quando saltamos um capítulo chato para chegar mais rápido ao fim do livro. Sabe que depois dizemos que lemos o livro inteiro e não o livro inteiro menos um capítulo. O pai natal tem uma câmara, e um computador, e sabe que estamos sem dinheiro ou que gastámos mais do que a conta em cinco soutiens caros.

O pai natal sabe que cobramos. Ó se sabe. Sabe o que exigimos dos outros. Sabe que nos permitimos ficar inertes quando sentimos falta de mimo. Sabe que achamos que estamos nesse direito. Sabe que tantas vezes o temos. E que outras talvez não. E aponta quando não. Sempre.

O pai natal tem uma lista, duas colunas, sabe o que é certo e errado, visto, qual o melhor caminho, visto, sabe o que fizemos mal, sabe o que fizemos bem, visto, visto. O pai natal tem uma câmara, para ver se nos portamos bem, se nos portamos mal, se comemos a sopa.

O pai natal tem uma câmara para ver se comemos a sopa. Tem mesmo. 
É melhor não arriscar. 

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

idade da inocência.

Os meninos de cinco anos são espertalhões, têm saídas giras, piadas inteligentes, imitam a mãe, o pai, a professora. Eu sou apenas mais uma mulher que não só gosta de escrever, como quer mostrar a meio mundo o quão inteligente, tão engraçado, tão fixe e bem-disposto que o seu miúdo é. Mas todos são assim. Ou quase todos. Quer dizer, além de todos terem pulgas no rabo, os meninos de cinco anos na plena posse das suas faculdades mentais dizem coisas que dão que pensar e misturam a inconsciência de acharem que o dinheiro nasce no multibanco com a consciência de que têm graça, de que já podem vergar os pais com esta ou aquela manha, esta ou aquela birra, de saberem aplicar na perfeição frases dos crescidos como “oh my god”, “ó minha santa padroeira” ou (dedo apontado para a cozinha) “siga para Paris!”.

Uma formação recente da minha empresa terminou com o formador (Vítor Briga) a pedir para escrevermos uma carta a alguém a quem estivéssemos gratos. Enquanto um ajudante distribuía os papéis e os envelopes, ele partilhou com os presentes que todos os dias fazia um esforço por escrever num caderno três coisas pelas quais estava grato. E, mesmo nos dias mais difíceis, quando seria melhor não ter saído da cama, conseguia anotar três coisas boas. Afinal, a menos que sucumbamos ao negativismo absoluto, há sempre algo de positivo na nossa vida, mais que não seja o facto de se estar vivo, de não se estar preso a uma cama como um vegetal, o facto de se ter jantado.

Demorei a expressar a gratidão de ter sido acompanhada e ajudada para gerar um homem inteligente e bom, saudável e independente. Foi preciso partilhar a sala de espera do bloco operatório com uma mãe com um miúdo com atraso de crescimento e uma doença neurológica para dar graças por os problemas de visão dos meus filhos serem só isso, doenças oftalmológicas. Em muitos dias, preciso de ver o pequenito com fralda, a babar, a andar nas pontas dos pés e a mal falar, para perceber a bênção de ter o meu a correr para mim ao fim da tarde. Os pais dos meninos saudáveis, como eu, nem sempre se lembram de que são pessoas com sorte, de que não há falta de visão ou de audição, ou de um braço ou uma perna, não há incapacidade de andar que seja mais grave do que não ter o tino, do que não crescer, do que ser sempre bebé.

Hoje, escrevo sempre que posso as tais três coisas por que estou grata e sei que sou uma mulher com sorte. É de facto um exercício terapêutico que realmente funciona quando o pessimismo, o lamento, se instala.


H E N R I Q U E  A F O N S O  P A I  C A R L O S  M A M A  A L D A  A V Ó  C A T A R I N A

“Ah, estou a ver que neste computador tens muitos ás.”
Ora anda cá ver onde escondo os agás.

domingo, 21 de dezembro de 2014

sete mares.

Adoro o splash das ondas quando passeio de mão dada nestes dias de inverno. O céu limpo, azul, e o sol que nos aquece refletido no espelho de água acompanham-nos no caminhar mas não chegam para aquecer a areia quando nos queremos sentar, deitar, quem sabe dormir, tal como fazemos no verão. Penso que para adormecer ao som do mar na noite mais longa do ano precisaria de lençóis de flanela, três cobertores, um edredão, um vídeo de 1h20 com o som das ondas do Youtube e um vulcão em erupção nas dunas mais próximas. A julgar pelo frio que está lá fora, arriscar um cochilo numa praia a sério significaria um repeat de pesadelos no caso de se conseguir efetivamente dormir. Felizmente, há sonhos que se repetem e que duram mais por estas noites também.

Um dos meus mais frequentes tem ondas mcnamarianas a bater em cinco, dez metros de praia. Não mais. Na maioria das vezes não há areia, que neva sempre e se forma um tapete com os flocos naquele miniareal deserto. E, acreditem, é tão bonito ver nevar sobre o mar.

Está frio, nunca vivi isto com calor. Como é um sonho, podia prestar-se a nevar neve quentinha, assim a trinta e sete, trinta e oito graus. Mas não: está sempre um vento cortante, neva intensa e obliquamente e, apesar de eu odiar vento e de as ondas serem aterrorizadoras, tudo é maravilhoso e não me lembro de ter medo.

Penso que esta aparente contradição está relacionada com as minhas raízes, com a minha saudade. E agrava-se evidentemente com o passar dos anos e a lamechice. Lamecense, adoro frio que corta, gosto da neve que nos enche “ojólhos”, fico fascinada com os flocos que se vêem cair mas nem sempre colam no chão, e adoro as ondas traiçoeiras das praias do Norte onde estávamos sempre caídos quando a escola nos dava três meses de férias.

Agora que estou crescida e que me fixei na Grande Lisboa, especialmente no inverno, dou por mim a agradecer os paraísos que tenho aqui ao pé, nem é preciso ir de avião nem nada, basta uma meia hora de carro. Então nestes dias frios com sol, em que sabe tão bem.

Há o Guincho, claro, e todas as praias de Cascais em diante até à Ericeira. Não digo que não é do melhor que há. Mas existem outros mares, igualmente fascinantes. Falo em mares de gente, em concentrações imensas e em concertos que não vemos em mais parte nenhuma. Falo nas paisagens até ao horizonte, tão diversificadas e tão imponentes, seja da colina da Graça seja do meio da Arrábida. Falo do mar de folhas secas que se acumulam nos jardins do Parque das Nações que dezasseis anos depois continuam a ser os jardins da Expo. Falo em mares de livros de livrarias grandes onde lemos devagar, e depressa nos perdemos. Falo do mar de lágrimas que nos vem num miradouro qualquer e sem razão nenhuma. E no mar de rosas que viemos à cidade grande procurar.

Aí, deixamo-nos ir na onda. E sonhar.

encravado.

Sai daí. Não te lembras? Sai, vais cair. Vais deixar cair isso. Lembras-te do dia em que te caiu o telefone? Foram cinco andares e tivemos de andar a apanhar bocados e a montar de novo. Lembras-te? Cinco andares, e aquilo continuou a funcionar. Incrível, mas funcionava. Depois, um dia, caiu da cama ao chão e puf!, já não dava nada. E o anel que usas no polegar, lembras-te? Ficou uma panqueca. Queres ficar uma panqueca? Sai daí que te cai alguma coisa. Tira daí o rabo, usa um banco. Não sacudas a toalha, usa a banca. Ai não, que não tem nada. Também achavas que a toalha do teu irmão não tinha nada e depois viste a colher a cair do sexto… quinto… quarto… terceiro… segundo... primeiro… chão! Foi mesmo assim, em câmara lenta: ficaste à espera que passasse alguém e que ficasse com aquilo espetado na cabeça. Ai não, que não ficaste: nem respiraste! Ai não, que não acontece. Não voltaste a sacudir a toalha lá para fora, é o que é. Está escuro. Ouve o que te digo: se te cai alguma coisa, perde-la para sempre. Lembras-te da aliança? É um jardim, remember? Nem com o miúdo a procurar, e o miúdo a perguntar aos senhores que passavam se tinham visto um anel da mãe, e os senhores que sorriam para o miúdo e procuravam, e nada. Perdeu-se. Queres perder-te? Depois deixaste um papel, dois, dois cartazes grandes que foste a casa fazer com os marcadores do miúdo, a pedir a quem encontrasse a aliança para ta meter na caixa do correio. Ridícula, pá. Quem devolve um anel da Calvin Klein? Tira daí o copo. Chega-o mais para cá. Lembras-te da lata de pronto? Lembras-te de como caiu e partiu a cabeça ao miúdo? Como olhaste para ele da janela e achaste que o tinhas matado? Como ele olhava para cima agarrado à cabeça rachada com sangue a perguntar porquê? Pois foi, achavas que o tinhas matado. E quando chegaste cá abaixo, como te olhavam, como se andasses a atirar latas de pronto pela janela, como se tivesses feito de propósito, lembras-te? Explicavas, e ninguém acreditava, ninguém te dava a palmada nas costas de que precisavas, ninguém te limpava as lágrimas. Lágrimas de crocodilo, sonsa, as desculpas não se pedem. Todos a olhar para ti, de lado. Como era possível teres acertado no miúdo com a lata de pronto, parece impossível… Lembras-te de teres ido agarrada a ele para o hospital na parte de trás de um carro que nunca soubeste de quem era? Só querias que lhe cosessem a cabeça. Que lhe fizessem os exames e te dissessem que ele ia ficar bem. Não o conhecias de lado nenhum, mas se calhar tinha-lo matado. Ma-ta-do. E sabias isso bem, não sabias? Pois. E agarrava-lo, e falavas com ele, e dizias-lhe “fala comigo, mantém-te a falar comigo. Desculpa. Oh pá, desculpa”. Que idade tinha? Talvez a idade do teu filho agora, vê só. Mais coisa menos coisa, era isso. Ele ia pôr o lixo e levou com uma lata de pronto nos cornos. E o hospital nunca mais chegava, e tu estavas a agarrá-lo, e a abraçá-lo, e compunhas-lhe o cabelo ensopado em sangue, fala comigo desculpa desculpa, e na tua cabeça só pensavas não morras, pelo amor de deus não morras. Não morras com uma lata de pronto nos cornos. Sai mas é daí, pá! Não podes sentar-te noutro lado? Com tanta cadeira… Porque é que te empoleiras no parapeito? Se ficas tonta cais. Já nem fumas nem nada, não precisas de estar à janela. Não interessa que agora seja mais baixo, mata na mesma. Ou ficas aleijada. Xô daí, queres ficar aleijada? Teimosa… Ai! Estás a apertar-me o coração.

Desculpa, filho, é este cinto que encrava.
Este carro já deu o que tinha a dar.

(baseado em cintos reais)

sábado, 20 de dezembro de 2014

joão.

Não parece ter 18 anos mas tem. Saiu de casa e foi viver como único português entre os espanhóis daquelas bandas. As aulas na faculdade começaram, difícil e exigente, como tudo – nem imaginas, mãe! -, os treinos mantiveram-se, veio a Portugal para estagiar com a seleção nacional. Da primeira vez, quando o estágio foi em Lisboa, tinha mazelas por todo o lado, joelhos, anca. Desporto exigente, o goalball, daqueles que não parecem, mas o são. Os jogadores que se entregam ficam literalmente partidos no final de cada treino e diz quem treina que é ainda assim viciante. Da segunda vez que veio, como o estágio foi no Porto, só pude falar com ele ao telefone, e estava “ótimo, não te preocupes, mãe, não, não estou nada magoado, estou fino mãe, não, os joelhos estão bem, ótimo, cem por cento, não te preocupes”. 

Só passaram três semanas. Diz que a vida dele é a correr de manhã à noite, e que tem estudado no avião. Quando o vejo no Skype, parece-me cansado, mas parece que é sempre assim que as mães veem os filhos que saem de casa para estudar ou casar (estás mais magro, filho; andas a alimentar-te bem?). Sempre que o questiono, diz-se “todo roto”, mas realizado, feliz.
Não parece ter 18 anos, mas tem. 

(Publicado no meu facebook a 15 de setembro de 2014)

o espírito.

Escolhe um poema para mim e oferece-me. Não preciso que gastes dinheiro em livros. Não quero livros de poemas. Telefona. Preciso de ouvir a tua voz para mim.

A boa notícia é que escusas de dar à chave da ignição. Podes ir passear atrás ao jardim e ligar. É a melhor prenda que me dás: relaxa enquanto passeias, agarra o telemóvel e diz que gostas de mim. 

Alguma vez mo disseste? Diz porque eu sou uma boa amiga, uma boa mulher, uma melhor pessoa. Faz-me ver que é isso, e que se nota, e que valho tanto. Oferece-me pastilhas de estima, leva a que queira sorrir ao espelho. Guarda o subsídio para andares menos stressado com as contas e mais disponível. Sorri. Sorri mais e para mim.

Dá-me um abraço. Se estiveres por aí manda um sms no dia de natal, só para mim, que estou farta de sms enviados para mim e mais cem, e avisa que tens algo importante para me dar depois. E depois, quando me vires, dá-me um abraço. E será isso. Será essa a tua prenda de natal.

Estou à espera que ligues. Não preciso de perfumes, não preciso de livros. Não quero as tuas cuecas azuis, pá. Não preciso de prendas. Meias, camisolas interiores, não preciso de nada.

Escreve-me uma carta. Pode ser no verso da fatura da luz, pouco importa. Pode ser a caneta de feltro. Escreve sobre o que eu tenho de bom e faz-me gostar de mim.

Não saias no fim de semana a correr para comprar o que não interessa. Fica comigo a dar-me o que preciso. E se não estiveres cá arranja uma maneira.


Feliz Natal.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

ainda não é o fim nem o princípio do mundo. calma é apenas um pouco tarde.

«Regresso devagar ao teu sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que não é nada comigo. Distraído percorro o caminho familiar da saudade, pequeninas coisas me prendem, uma tarde num café, um livro. Devagar te amo e às vezes depressa, meu amor, e às vezes faço coisas que não devo, regresso devagar a tua casa, compro um livro, entro no amor como em casa.» 

Manuel António Pina

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

a morte.

Não vivemos para sempre. Vivemos mais agora porque nos prolongam a vida depois de estarmos doentes e prontos para ir, mas não ficamos aqui para contar a história.

A consciência da morte surge na idade dele, cedo de mais para conseguir perceber porque não podemos levar a playstation lá para o céu quando morrermos – "têm televisão lá, mãe?" –, cedo de mais para perceber que não vamos, não podemos, em nenhuma família se pode, filho, ficar aqui para sempre. 

Para aliviar as coisas, quando o tema surge à noite – já depois da história, e da canção, e da brincadeira com as aventuras do henrique que tem um avião e voa para outro país para ir buscar batatas para fazer a sopa para a festa com os amigos –, há uns tempos combinámos ir todos juntos. 
Eu, o papá, o mano, os avós. Mas ele sabe que não vamos. A avó Hirmínia já foi, a avó Carmito também, e nós não fomos, porque tínhamos coisas para fazer, filho, agora dorme.

Ele já percebeu que não é para sempre. Um dia mais tarde, talvez quando chegar à idade do outro, perceberá que há vários tipos de morte, e há quem morra muito antes de ir lá para cima, quem queira morrer e fique cá em baixo, quem se agarre à vida e seja sugada como num tornado.

Tens a vida toda para aprender muita coisa, filho. Há outras coisas, mais bonitas, que também te quero ensinar. Agora dorme.
"Quando estiveres velhinha, e fores lá para cima das nuvens... depois telefonas, está bem?". Telefono, claro que telefono.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

teoria da relatividade.

Estava a sair do metro e as miúdas tentavam descer pela escada rolante que subia. Riam, guinchavam mesmo, umas observavam as outras, a ver se conseguiam. “Segura aí os livros que eu consigo.” Que idade teriam? Doze. Se fosse apostar, apostava por aí, nos doze. Mas podiam ter mais um bocadinho. Menos um bocadinho. É tão difícil estimar a idade desta gente hoje em dia…

Um grupo de miúdas giras, todas diferentes nos seus all stars iguais e nos seus cabelos com o mesmo tamanho e o mesmo corte, todas diferentes com as mesmas calças justas, nestes preparos: a escada rolante subia e elas queriam descer por ali. Simples. Pensei que talvez eu estivesse errada, a usar as escadas ao lado das delas para sair da plataforma, mas daí talvez não. Acabámos por chegar ao fundo do patamar ao mesmo tempo, eu obviamente muito menos divertida, muito menos cansada, sim, mas mais velha, chata, cota até, nem sequer sorria, a fazer coisas sem graça como aproximar o passe para abrir a cancela (iriam elas saltar?) e dirigir-me para o carro enquanto duas das três corriam para a paragem.

Acabei por ir no encalço de uma, decerto vivia por ali, que se despediu e seguiu séria à minha frente (seria a mesma?), pronta para chegar a casa e se fechar no armário. As outras, juntas, continuavam a ouvir-se íamos nós já lá longe, ainda pareciam ter energia para tocar às campainhas, mandar calar os piropos aos miúdos do parque, responder torto à professora, fazer uma tatuagem na virilha e pôr um piercing na sobrancelha. A miúda que eu perseguia, obviamente em processo de transmutação (estava mesmo à espera que virasse casulo), ouvia com certeza os guinchos das outras e ia teclando no telemóvel enquanto andava – já simplesmente não há como caminhar sem teclar.

Por momentos, tentei percebê-las. Crescer custa para caramba, e a idade da parvoeira é o tempo da incompreensão. Tentei pensar, hey!, são miúdas! Não foi assim há tanto tempo que eu estava na idade delas, e partilhei daquela histeria, recebi o mesmo olhar de desdém dos circundantes, fiz aquelas experiências, ou outras piores, mais ridículas.

Depois fiz as contas e resolvi não pôr isso por escrito – claro que é mais forte do que eu e acabei de o fazer – mas… bolas! O tempo foge-nos pelas mãos (cliché) e quem se transmuta somos nós! A brincar a brincar, passaram mais de 20 (vinte!) anos. Como poderei eu achar que as percebo? Como poderei aproximar-me? Como farei quando o pirralho chegar aos 12 e se fechar em copas e eu continuar a achar que o percebo, que sei lidar com o assunto, porque foi há pouco tempo e, então, (morde a língua para não sair uma asneira, alda mota), terão passado 30 anos! Trinta anos, pá!

Crescer custa, sim, mas o passar dos anos quando deixamos de crescer é a-bso-lu-ta-men-te lixado. As responsabilidades a que não há como fugir, como cozinhar, quando se detesta, trabalhar, quando só apetece dormir, prender uma prateleira à parede, quando odiamos bricolagem. As miúdas que descem a escada rolante no sentido contrário não o sabem, e quando o perceberem talvez já tenham passado os tais 20 ou 30 anos, e talvez não consigam encaixar a ideia de que estão a ficar velhas, chatas, cotas, a ser olhadas de lado por catraias que, histéricas, tentam contrariar a lei da gravidade e da razoabilidade. E as outras eram elas, podiam jurar, ontem mesmo.

Facto: a vida passa rápido demais, e não nos dá tempo para nos adaptarmos. Quando damos conta, num ápice, temos o miúdo na faculdade e o pequenito a subir ao escadote e a querer ser ele a fazer os furos na parede.

Quando tiveres a idade do mano eu ensino-te a usar o black&decker, prometo, agora desce daí. “E tu ainda aqui estás quando eu tiver a idade do mano?” Estou, filho. “Boa. Bem me parecia.”
Nem quero fazer as contas, recuso-me.


a pergunta.

Não confio em mulheres altas, em meias-lecas. Não confio em mulheres inteligentes. Não confio em mulheres com falinhas mansas, calmas, em mulheres sérias. Não confio em mulheres que oferecem ajuda, em mulheres com sorrisos. Não confio em mulheres gordas, com celulite, com pêlos nas pernas. Não confio em mulheres que fazem covinhas quando riem. Que enrugam a testa, que erguem o sobrolho. Não confio em mulheres sem sobrancelhas, carecas, que franzem o nariz. Não confio em mulheres que sabem ouvir. Em mulheres que não se calam. Em mulheres saudáveis, em mulheres doentes, em mulheres com buço. Não confio em mulheres com os lábios secos que puxam as peles com os dentes enquanto ouvem. Não confio em mulheres que lêem o jornal, em mulheres com os cabelos brancos. Não confio em mulheres que riscam livros, que recortam e colam por trás da secretária. Que pedem romances emprestados e não devolvem. Que oferecem livros a outras mulheres. Não confio em mulheres que sabem recitar um poema. Em mulheres com amigos gays. Em mulheres que beijam na boca. Não confio em mulheres que coçam a cabeça, que esfregam as mãos, em mulheres quentes, em mulheres com frio. Não confio em mulheres bem-postas, conscientes, com protocolo. Não confio em mulheres sem modos, sem carro, sem dinheiro, não confio em mulheres sem filhos. Não confio em mulheres que roem as pontas dos dedos, que comem cola, que dão conta de um chocolate numa travessia de barco, que correm ao fim da tarde sozinhas, que escondem gomas no quarto. Não confio em mulheres que riscam o interior das letras quando falam com as amigas. Que desenham flores e cornucópias nas páginas amarelas. Não confio em mulheres que brincam com os anéis, em mulheres enrascadas, em mulheres que sabem pesquisar em listas telefónicas, que levam moleskines, agendas de bolso, blocos de notas e cadernos na mala. Não confio em mulheres que arrumam a carteira e deitam fora talões de compras. Não confio em mulheres com acessórios de marca, em mulheres de calças, em mulheres com lenços de papel nos bolsos. Não confio em mulheres com cicatrizes ou nódoas de pasta de dentes. Não confio em mulheres de letras. Não confio em médicas. Não confio em mulheres que se dizem especialistas, não confio em conselheiras. Não confio em mulheres caladas, que estão sempre a mandar mensagens, que tiram o som ao telefone, que viram o visor para baixo. Não confio em mulheres que gostam de programas que mostram como estarão daqui a trinta anos, em mulheres de cinquenta que tentam ter trinta anos, em mulheres com menos de trinta anos. Não confio em mulheres plásticas, que se queixam, que se gabam, que pintam as raízes, os olhos, as maçãs do rosto, as unhas dos pés de vermelho. Não confio em mulheres-palhaço. Não confio em mulheres que não gostam de rosas. Não confio em viúvas, em tristes, não confio em deprimidas. Não confio em mulheres que se desleixam e não se maquilham. Não confio nas que se arranjam demais. Não confio em traídas que sabem que são traídas e viajam com os maridos. Não confio em mulheres que dão erros ortográficos em cartas. Não confio nas que aceitam e usam as prendas dos amantes casados. Não confio em mulheres que fogem com os namorados. Não confio nas desempregadas, nas violadas, não confio nas amigas coloridas. Não confio nas melhores amigas.

Chega?

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

encontros e despedidas.

Crescemos a quererem ensinar-nos que ganhar e perder é tudo desporto. O tanas.
Se o objetivo é ganhar o jogo, perdê-lo não é o mesmo que ganhá-lo. Uma coisa é querer subir de divisão, comê-los a todos, conquistar a garina, mostrá-la aos amigos, comprar aquela máquina, levá-la aos 190 na ponte Vasco da Gama. Outra é descer de divisão, querer casar com a miúda e levar com os pés, estampar-se contra um poste.

O que temos de manter em mente é que há sempre mais campeonatos, mais miúdas, mais carros (se não morrermos na ponte). E que há que distinguir o sonho da realidade, e sonhar alto demais acaba sempre por nos fazer cair.

Escrevo isto do aeroporto, onde vou encontrar uma equipa de guerreiros, que trabalharam durante o último ano como nunca vi nenhuma equipa trabalhar. Com dor, a perder peso, a magoar até formar músculo, mais músculo, a acreditar no sonho, a acreditar que a nódoa negra que dói vale a pena. Quero explicar-lhes que compreendo que não ganhar os pode fazer tristes, mas que cada um é um vencedor. Que isso conta, que se lixe o desporto, há a falta de apoio à modalidade (as restantes equipas tiveram direito a levar mulher, filhos e cão para a bancada; nós ficámos cá a apoiar no youtube), há a falta de visibilidade dos desportos paralímpicos (o que é o goalball, afinal?), há o fosso abissal entre o apoio dado ao meu filho e a um jogador da seleção de futebol, de basquetebol, de andebol até.

Há apoiantes do youtube por todo o lado, os nossos amantes invisíveis que ficam sempre orgulhosos de nós. Independentemente de termos ganho ou perdido. E é para esses que vale a pena continuar a lutar.

"Foi mesmo até ao último minuto, estava nosso." Pois, é triste, mas é assim mesmo. Faz parte da vida e do desporto.

https://www.youtube.com/watch?v=CU6id0U2hGA 

(Publicado no meu facebook a 29 de setembro de 2014)

o cruzamento.

Dorme, meu menino, dorme. Dorme e sonha, dorme e sonha. É fofa essa relva onde adormeceste? Quão fofa é uma relva húmida a apoiar um corpo deitado? Vais acordar com marcas de terra e relva na cara, meu anjo. Cara de almofada. Como será ficar com cara de almofada depois de dormir na relva? Quanta chuva vai precisar de cair sobre o teu corpo deitado para te acordar? Talvez pare de chover entretanto, nunca se sabe. Talvez pare. Vai dormindo. Talvez passe.

Quem te adormeceu esqueceu-se da manta. Esse casaco castanho, ou verde, ou bege, ou outra coisa qualquer suja deve ser pouco. Vais ter frio, meu menino. Dorme. É melhor dormires. O álcool aqueceu-te e adormeceu-te, meu anjo, mas vais ter frio. Sabes, o calor da bebida passa ao fim do primeiro desgosto. Depois só resta o frio, e não vale a pena beberes mais. Oi, sabias que não vale a pena beber mais? Não resolve, dói na mesma.

O que doerá mais: a solidão ou a falta da pinga? A pinga. Tantos pingos a escorrerem pela testa, tão orvalhada essa barba na relva. Porque te deixaste dormir aqui? Não estás morto… Não, ele não está morto; podem circular. Adormeceu aqui porque sim. Não é, meu anjo? Quando deste por ela, já não havia unhas para roer, já tudo era surro, sabugo podre, solidão. Tens solidão tatuada nas unhas, meu menino.

Mas dorme. Desculpa estar aqui a falar. Não vejas os carros que abrandam para te ver quando o semáforo fica verde, desmaiado na relva onde caíste. Ignora quem te olha e não sabe quem és. Eu não sei quem és e virei o olhar. É melhor dormires, meu anjo. Dorme. Não vejas o que diz o nosso olhar.