Quando passa por mim, a avó do miúdo pergunta-me como vai o Afonso. Já por várias vezes lhe disse que não, que não fazia mal ("claro que não faz mal!"), mas está enganada: Afonso é o apelido, assim como a senhora é Martins (ou Santos ou Silva, não sei bem), está a ver? Henrique Mota Afonso. E não que já tenha arrumado as botas, mas começo a desanimar. Cruzamo-nos ao fim do dia, quando voltamos da escola cheios de surro e com as unhas verdes da plasticina, e a senhora é sempre simpática: "Olá Afonso, correu bem a escola, correu, Afonso?" E eu "cumprimenta a senhora, Henrique", "responde à vizinha, Henrique". Sorrio sempre, com os dentes todos à mostra, enquanto a senhora passa e eu trato de tapar com o tronco a testa franzida dele a vê-la descer: "Mamã, ela estava a falar pra quem?"
O neto dessa senhora é um castiço. Lembro-me da primeira vez que o vi, recém-nascido, e perguntei aos pais pelo nome. A mãe, vaidosa no seu adereço embrulhado no cobertor, respondeu "Diogo" (ou Manuel, ou António, eu também não sei o nome dele, é para aprender), e o pai prontamente se sobrepôs, dizendo "MARTINS! Diogo MARTINS" (ou Santos ou Silva). E sorriam, e iam abraçados, mal cabiam nas escadas, mal conseguiam subi-las bem, e aquele abraço transbordava orgulho, vazava felicidade por todos os lados.
E depois veio o choro. Mais do que o choro do bebé, o choro dela na rua, depois as discussões ao telefone (impossível não ouvir os gritos dados à janela, impossível tapar a cabeça com a almofada e não ouvir MAS O QUE É QUE QUERES QUE EU TE FAÇA??!, impossível ouvir o bebé a chorar - é tão normal que eles chorem - e não pensar que o fazia por tristeza, que aqueles cinco quilos de chicha compreendiam o que estava a acontecer, a profundidade dos gritos do pai, o significado dos gritos de volta da mãe).
Agora deixei de a ver por lá e, quando aparece, vê-se que está só de visita, de passagem em frente ao café onde ele vai beber, não trabalha, deve estar desempregado, e onde ele não bebe só café, todos os dias, mas onde vai beber, com o puto.
Ressalva: este é um texto de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação de quem escreve. E no entanto, ontem à noite, lá ia ele, braço esticado para cima, a dar a mão ao pai, a caminho do café. Não parecia ter sono, mas eram dez da noite. Em casa, o meu afonso lia a história para dormir.
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