Um papel, outro papel. Preciso de mais papéis. Preciso de ter a beca. Não é o Becas, é a beca, a bolsa em espanhol. Faltam dez papéis, nove fotocópias de cartões, oito impressos, preenchidos, dois frente e verso. Do ridículo deste país. Do ridículo do país-irmão. Burocratas, burocratas.
Comecemos por uma difícil: para garantir a frequência de uma universidade em Madrid, um aluno português precisa que a Universidad Nacional de Educación a Distancia receba um comprovativo da Direção-Geral do Ensino Superior português em como o estudante fez as cadeiras necessárias para frequentar o curso. Até aqui tudo bem, é o mesmo que acontece com o acesso ao ensino superior em Portugal. Faz-se a média da frequência com a nota do exame, ou dá-se uma determinada percentagem a cada uma destas parcelas e, se a nota for a mínima necessária, não há problemas de maior. Aliás, quando terminam o 12.º ano, os alunos podem pedir uma coisa chamada ficha ENES, que discrimina as notas finais obtidas nas diferentes disciplinas, do 10.º, ao 12.º, tendo em conta não só a frequência como a avaliação final nos exames. O lógico é a nossa Direção-Geral do Ensino Superior guardar nos registos estes dados e, quando lhe é perguntado se aquele aluno reúne condições para estudar numa universidade estrangeira, o registo indicar se sim ou se não, consoante tenha ou não aproveitamento global positivo ou negativo à disciplina, certo? Errado: A Direção-Geral do Ensino Superior passa uma “coisa” chamada Certificado de Acesso ao Ensino Superior Estrangeiro tendo por base somente as notas dos exames, e somente as superiores a 9,5. Um exemplo, um “supônhamos”, como se costuma dizer: um rapaz bem-parecido, mais ou menos da altura do meu, com o cabelo semelhante ao dele e o meu sangue nas veias tem 16 na pauta e 9 no exame de Biologia; digo mais, um rapaz bem-parecido, mais ou menos da altura do meu, com o cabelo semelhante ao dele e o meu sangue nas veias tem 19 (!) na frequência da disciplina e 9 no exame. Sabem o que aparece no registo de Biologia da DGES? Não aparece. Como o que consta é apenas a nota do exame e apenas e só se o resultado for superior a 9,5, para todos os efeitos, o rapaz não fez a cadeira, nem sequer a frequentou, nunca sequer se inscreveu. Inacreditável, não é? Não aparece sequer a indicação de que se propôs a exame, não dá para subornar os tipos simpáticos que nos atendem na Duque D’Ávila e pedir para contornarem o sistema (acreditem, eu tentei).
Agora imaginem que a disciplina pedida para frequência de um curso qualquer, por exemplo Fisioterapia, é Biologia, e está mencionada em todo o lado (ficha ENES incluída) como tendo tido aproveitamento, mas não nos registos da DGES, responsável pelo envio da declaração que certifica que o aluno pode frequentar aquele curso. Imaginem que o rapaz bem-parecido teve uma dor de barriga, uma enxaqueca de caixão à cova, uma insónia, uma branca no dia do exame. Tendo tido 19 na frequência estava mais descansado, não é? Não. Sabem como se resolve isto? Descobrindo com os senhores simpáticos da Duque D’Ávila qual o curso que mais se aproxima do pretendido cuja específica pedida seja alguma das constantes no ecrã do computador, e envia-se para Espanha uma alegre declaração carimbada a atestar que o aluno frequentou as cadeiras necessárias à frequência do curso de er… pode ser…… Biologia! Depois é rezar aos anjinhos e pedir que lá da UNED mandem para a Universidad de Madrid um OK para ele frequentar... Fisioterapia.
Outra, esta é mais fácil, para os espanholitos não ficarem a rir-se. Para o rapaz bem-parecido, mais ou menos da altura do meu, com o cabelo semelhante ao dele e o meu sangue nas veias completar a matrícula na universidade, precisa de ter um NIB de uma conta de um banco espanhol por onde possa receber a bolsa. Para abrir a conta no banco espanhol, precisa de ter a matrícula na universidade. Para ter a matrícula na universidade, precisa de ter um NIB de uma conta de um banco espanhol por onde possa receber a bolsa. Para abrir a conta no banco espanhol, precisa de ter a matrícula na universidade. Estão a ver? É giro andar às voltas, mas é na Feira Popular. Aqui, como é que se resolve? Com sorrisos e simpatia e, vá lá, uma senhora na secretaria que também acha o rapaz bem-parecido e dá uma forcinha para deixar passar os impressos.
Outra vez por cá. Na Segurança Social agora só atendem por marcação. No serviço do Areeiro, só dá para agendar para dezembro, portanto as alternativas dadas pela telefonista são Moita e Amadora (que fica, perdoem-me, mas é mesmo assim que se diz, no cu de judas de cima). Mas que não me preocupasse que ela regista o meu pedido e basta que apresente cópias dos documentos dos miúdos. Como o metro não vai até à Moita, marco para a Amadora e subo 20 minutos a pé. Objetivo: obter uma declaração que ateste que nem eu nem os dois moços recebemos subsídios. Simples, não é? Difícil. Um chorrilho de perguntas sem resposta: “Então se trabalha como é que eu lhe posso dar uma declaração em como não recebe subsídio?" Er... "Só posso passar aquilo que recebe, não aquilo que não recebe. O mesmo para o bebé: se não recebe abono, não posso passar papel nenhum a dizer que não recebe. Só posso passar declarações daquilo que recebe, nem o sistema deixa, ó, ó, estou a tentar, e não me deixa. Tome aqui o seu extracto de remunerações, e é para não dizer que vai sem nada. E tire o cavalinho da chuva porque existe o direito à confidencialidade e para o seu rapaz maior de idade pedir alguma coisa tem de ser ele a vir cá." Er, mas... "Ou então ele que lhe passe uma declaração.” Depois de um acesso de raiva e uma contenção de choro, peço para ela ir lá falar com o superior (como seria assim tão difícil passar um papel a dizer que não recebíamos nada?). A senhora desaparece por minutos, volta, lamenta, mas nada feito: tenho de ir noutro dia, com a procuração assinada e reconhecida pelo notário, para tentar aceder à informação do mais velho; e do mais novo nem posso esperar receber nada, porque ele nem sequer está no computador, a mesma lengalenga, “blá blá blá, não posso passar um documento sobre algo que não recebe, nem sequer para declarar isso mesmo”...
Ó rapaz bem parecido, faz lá o favor à tua mãe e escreve esta declaração assim assim, vai aí ao notário, reconhece a assinatura, envia para cá, e quando conseguires avisa, que marco nova entrevista e vou lá tentar da minha sorte. Para quando? Para ontem, estamos em contagem decrescente para o deadline da entrega dos papéis para a beca.
Fui lá hoje. Atendida por uma senhora que nem olhou para a procuração do João. Que a fotocopiou, seguramente por pena da mãe que, incrédula, lentamente percebia que tinha sido atendida pela mulher errada, que não sabia trabalhar com o computador, ou pelo menos não sabia lidar com o sistema. Recebi sete declarações, incluindo certificados de que não recebemos abono de família, subsídios de desemprego ou pancadinhas nas costas. Deu-me dois impressos para pedir abono de família para os dois miúdos e disse que posso tratar de tudo para o mais velho até aos 24 anos dele. No final, piscou-me o olho.
Chama-se Ana Lino. Guichet 4. Dá um jeitaço ser ela a atender. Creio é que não dá para escolher.
É como nos sorteios das faturas para os carros – tudo uma questão de sorte.
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(publicado no meu facebook a 28 de outubro de 2014)
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