Não se pergunta a idade às senhoras, mas tem histórias para
duas centenas de anos. De quantas páginas precisaremos para as escrevermos a todas?
Zangada com os cabelos brancos que caem, tira o chapéu e
mostra. Depois, olhos molhados, daqueles que já não fixam, que tanto choram a
rir com o neto rabino como a sofrer de saudade, fica a olhar no vazio e deixa
despontar um ponto negro de acne na cara enquanto se queixa da idade.
Não será adolescente, mas não sei quantos anos tem. Uns
duzentos talvez.
Deseja viver muito mais, não quer deixar de ver os netos crescer.
Gaba as meninas que estão umas mulheres e se fizeram tão bem (não, os meninos
não é a mesma coisa). Volta e meia anda limpar o chão da rua com o rabo, rasteirada
pelo sebo de uma folha de outono no passeio encerado junto aos contentores do
lixo. Vale-lhe quem passa e a acode, e a capacidade que sempre tem de se
recompor depois de cair, depois de vir abaixo, e tantas vezes a vida a mandou
abaixo, como o sebo do chão.
Verdade que o corpo demora mais a recompor-se agora do que
aos vinte, mas, como não se pergunta a idade às senhoras, não posso alongar-me
sobre a evolução da coisa pelo tempo fora. Imagino que seja mais velha do que
isso, que tenha mais do que trinta, mais do que cinquenta. Cai e lá se levanta,
da mesma forma que cada dia cola os cacos do coração partido pelo marido que a
deixou sem ela estar pronta.
Conta a história uma, duas, três vezes; esquece-se do que já
falou e volta à mesma novidade e repete-a, sempre com encanto, como se fosse a
primeira vez. É capaz de enumerar pormenores, sons, jeitos dos miúdos (putos
que ainda só não lhe deram bisnetos porque não calhou), da mãe com pêlo na
venta que era tão parecida com ela, do pai que morreu cedo debaixo de um trator.
Lembra avós e tios e primos que lá ficaram na aldeia onde havia mais sete com o
nome dela, mas onde agora são só duas. Declama poemas e sabe o autor, enquanto
se lamenta dos olhos estragados e dos óculos que já só funcionam assim, e ergue
as armações para explicar como, juntando as lentes ao centro da pupila para
focar melhor.
Duzentos anos pesam na coluna, que arqueia um pouco, e nos
ossos, que já doem. Depois dos sessenta os ossos doem, daí que suspeite que tenha
mais do que isso. Mas, bem, não sei: não se pergunta a idade às senhoras.
Para a receita do ben-u-ron e das outras drogas que toma,
tem de pagar três euros por consulta no Centro, pois que antes era isenta e
agora já não. Depois dos setenta, dos setenta e cinco, já não é isenta, agora
tem de pagar. Traz na mala uma caixa para os comprimidos; um para o colesterol,
um para o sangue, um para dormir (“a médica mandou tomar dois inteiros, mas eu
só tomo meio”), mais um para isto, mais um para aquilo.
Fala dos filhos como se continuassem a precisar dela como em
bebés, como se andassem às cavalitas uns dos outros e ainda pregassem partidas
com bichos à mãe, a esta mãe que tinha tanto medo de bichos e agora não parece
ter tido medo de nada.
Sim, não lhe dou menos de duzentos anos. Ela já deixou de
contar, portanto não dá para saber. Além disso não se pergunta a idade às
senhoras.
De quantas páginas precisaremos para escrever duzentos anos de
vida?
Bem, há coisas que não se perguntam.
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