A casa suja-se pouco com um miúdo a menos. Com dois miúdos a menos, a casa é menos casa. Torna-se em algo quase inabitado, a cama feita depois de acordar, a loiça arrumada depois da refeição, sem migalhas no chão, sem pingos no lavatório, como se não vivesse ali ninguém. Não há roupa acumulada, não há casas de banho ocupadas, não é preciso esperar por ninguém para jantar, não é preciso fazer o jantar.
Imaginem um museu. Há o quarto dele, estão a ver?, mais clean, limpo mesmo no sentido do termo, não há quem o suje, passemos então ao outro, por aqui faz favor, pois é, fotos e planetas pendurados por todo o lado, olhem ali o mocho e o bode, não, não fui eu que fiz, carros e dinossauros e aviões colados na parede, agora aqui é a casa de banho, mais além a cozinha…
Na sala dorme a cadeira de baloiço, onde me sento, onde me embalo, onde leio. Finalmente pude trazer um candeeiro da mesa de cabeceira fora de uso para não dar cabo dos olhos enquanto leio na sala. Agora leio e não dou cabo dos olhos. Mas só tenho tempo que preste para ler quando estou no museu, porque quando estou em casa há sempre coisas para fazer, para arrumar, para limpar.
A televisão também funciona melhor em casa do que no museu. Todos os dias de manhã acompanha a papa, todos os fins de semana permite-me dormir mais um bocadinho, por favor, Wiki, só mais um bocadinho, eu já te faço a papa. Quando o mais velho estava em casa, havia sempre tiros a vir da cozinha ao pequeno-almoço, o ecrã passava aquelas séries em que os polícias de investigação – giros, esses polícias de investigação – acabam sempre por descobrir quem matou quem. Quando ele não está, não morre ninguém. Um mosquito ou outro, uma borboleta da noite, talvez, odeio bicharocos, gostava de ter cá alguém só para fazer o servicinho, mas de resto não morre ninguém no museu.
A minha semana de trabalho também rende mais quando não durmo em casa. Com os miúdos, não há maneira de esticar as horas, vens buscar-me cedo hoje?, vou tentar, prometo, até logo, porta-te bem. Do museu não é preciso sequer dizer até logo, basta fechar a porta, dar duas voltas à chave,
algo que às vezes não acontece em casa – limitaste-te a bater a porta, e se ficasse mal fechada? –, e nunca há discussões com ninguém.
Mas por vezes há choro, sim, tristeza, sim, solidão, sim, mas depois os amigos visitam, sessão de cinema, fixe, vêm os pais, está tudo bem, óptimo, no museu há jantares com risos depois das nove da noite, há deitar tarde e cedo erguer, não há miúdos. Quando saio de casa, no meu carro cabem mais dois. Quando saio do museu, nem carro tenho, vou de metro,que não preciso do carro para nada.
O domingo é o dia da troca. O dia em que fecha o museu. O dia em que o silêncio e o choro e a solidão passam a poder ser partilhados, passam a ter companhia. Em que nos temos um ao outro, a falar com o mano pelo Skype, quase como se ele estivesse aqui. O fogão volta a funcionar. A roupa parece nunca mais acabar. Há rotina, há risos, há jogos, discussões, parece que é assim a vida toda, que todas as semanas são semanas-sim.
E por momentos, às vezes durante dias seguidos até, esquecemos que vivemos num museu.
Em casa está-se melhor.
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