quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

a boina.

Distinguir entre primeiras impressões certas e primeiras impressões erradas é uma arte que não domino. Basicamente, sou tão facilmente endrominada como sou surpreendida. Já aconteceu achar ser falsa uma pessoa que me deu a mão, já apostei tudo em relações que acabaram, já me desiludi, já fui inocente, já fui desconfiada, já dei uns quantos tombos. Não tenho jeito para isto, ponto final parágrafo. Eles


(ups, esqueci-me do parágrafo)


Eles andam por todo o lado. Na rua: “A senhora desculpe, olhe, por favor, posso ter um momento da sua atenção? Estou desempregado…” Na fila para comprar o passe: “A vizinha por acaso tem vinte cêntimos?” Na carruagem: “Quem tem a bondade e a possibilidade de me auxiliar?” Na Baixa: “Preciso de aviar esta receita para o meu filho que está doente.”

Poupem-me. Um destes dias uma amiga falava em como, saindo de casa mais cedo do que costume, apanhava os pedintes todos a “montar” as suas maleitas: a esconder a perna, a arregaçar a manga, a chegar direito a um semáforo onde depois se entortava e tremia com um copo de plástico na mão a pedir pela sua saúde.

Já me aconteceu dar dinheiro, por comiseração. Sim, já dei, porque acreditei de facto. Já dei porque queria ajudar. Eventualmente nunca saberei se fui ingénua ou não. Não interessa, já está. Também já dei o meu lanche. No metro, já dei as tostas a uma senhora que não disse que não, mas também não ficou contente. Já dei o meu almoço. Uma vez, na Praça de Espanha, ofereci a maçã que levava no saco. O senhor que pedia parou uns segundos, olhou para a minha mão esticada fora da janela do carro e perguntou se eu não tinha uma banana. Depois pediu desculpa, mas não servia. Agradeceu e sorriu: faltavam-lhe os dentes.

Em Lamego, quando era miúda, à porta da Sé estava sempre um pobre coitado, bêbedo – ou a parecer bêbedo, lá está, não sei avaliar –, com uma boina no chão, onde pingavam moedas à saída da missa. Durante anos, esse foi o único pedinte que me lembro de ver na cidade. De resto, havia pobreza, sim, como em todo o lado, estou certa de que havia miséria também, mas não havia mais pedintes do que aquele.

Saí para estudar em Lisboa, e fui daquelas que não voltaram. Que compraram casa fora, que se casaram, puseram os filhos a estudar, arranjaram emprego e contas para pagar, e agora só voltam à cidade nas Festas, na Páscoa (não há Páscoa como a nossa) ou no Natal. Nas poucas vezes que vou a Lamego, não suporto os pedintes desenquadrados da cidade que era a minha. Xô, desculpem, mas esta cidade não tem pedintes. Tinha um e já morreu. Esta cidade não tem pedintes em cada canto. Saiam da porta do banco, deixem as pessoas passear na Avenida, desamparem a loja. Há muitas cidades pequeninas por aí, por favor: é apanhar a carreira e ir para a terra ao lado, ok?

Ai é, ficam? “Deixá-lo”, como dizia a avó Hirmínia. Também, francamente, dou cada vez menos. Assim, pagam uns pelos outros, como na turma em que um faz asneira e ninguém se acusa. Desculpem, mas pagam uns pelos outros.
Na minha terra, como me lembro dela, não há nem megacentros comerciais, nem minipreços, nem lojas de chineses, nem sucursais de bancos em cada esquina, nem... pedintes. Não se assaltam carros, todos se conhecem e sinto-me segura. Na Avenida 5 de Outubro, ao lado da Caixa Geral de Depósitos fica o BNU, e a Rua de Almacave tem dois sentidos. Bem como a Rua do Teatro: subi-la, só em primeira. Que interessa se o Cinema Spock está fechado há anos: tenho cafés às mãos-cheias, amigos, memórias, tenho sempre onde ir.

Desconfiada, desconfiada… recordações à parte. É favor não estragar a gaveta onde guardo as coisas boas.

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