Sai daí. Não te lembras? Sai, vais cair. Vais deixar cair isso. Lembras-te do dia em que te caiu o telefone? Foram cinco andares e tivemos de andar a apanhar bocados e a montar de novo. Lembras-te? Cinco andares, e aquilo continuou a funcionar. Incrível, mas funcionava. Depois, um dia, caiu da cama ao chão e puf!, já não dava nada. E o anel que usas no polegar, lembras-te? Ficou uma panqueca. Queres ficar uma panqueca? Sai daí que te cai alguma coisa. Tira daí o rabo, usa um banco. Não sacudas a toalha, usa a banca. Ai não, que não tem nada. Também achavas que a toalha do teu irmão não tinha nada e depois viste a colher a cair do sexto… quinto… quarto… terceiro… segundo... primeiro… chão! Foi mesmo assim, em câmara lenta: ficaste à espera que passasse alguém e que ficasse com aquilo espetado na cabeça. Ai não, que não ficaste: nem respiraste! Ai não, que não acontece. Não voltaste a sacudir a toalha lá para fora, é o que é. Está escuro. Ouve o que te digo: se te cai alguma coisa, perde-la para sempre. Lembras-te da aliança? É um jardim, remember? Nem com o miúdo a procurar, e o miúdo a perguntar aos senhores que passavam se tinham visto um anel da mãe, e os senhores que sorriam para o miúdo e procuravam, e nada. Perdeu-se. Queres perder-te? Depois deixaste um papel, dois, dois cartazes grandes que foste a casa fazer com os marcadores do miúdo, a pedir a quem encontrasse a aliança para ta meter na caixa do correio. Ridícula, pá. Quem devolve um anel da Calvin Klein? Tira daí o copo. Chega-o mais para cá. Lembras-te da lata de pronto? Lembras-te de como caiu e partiu a cabeça ao miúdo? Como olhaste para ele da janela e achaste que o tinhas matado? Como ele olhava para cima agarrado à cabeça rachada com sangue a perguntar porquê? Pois foi, achavas que o tinhas matado. E quando chegaste cá abaixo, como te olhavam, como se andasses a atirar latas de pronto pela janela, como se tivesses feito de propósito, lembras-te? Explicavas, e ninguém acreditava, ninguém te dava a palmada nas costas de que precisavas, ninguém te limpava as lágrimas. Lágrimas de crocodilo, sonsa, as desculpas não se pedem. Todos a olhar para ti, de lado. Como era possível teres acertado no miúdo com a lata de pronto, parece impossível… Lembras-te de teres ido agarrada a ele para o hospital na parte de trás de um carro que nunca soubeste de quem era? Só querias que lhe cosessem a cabeça. Que lhe fizessem os exames e te dissessem que ele ia ficar bem. Não o conhecias de lado nenhum, mas se calhar tinha-lo matado. Ma-ta-do. E sabias isso bem, não sabias? Pois. E agarrava-lo, e falavas com ele, e dizias-lhe “fala comigo, mantém-te a falar comigo. Desculpa. Oh pá, desculpa”. Que idade tinha? Talvez a idade do teu filho agora, vê só. Mais coisa menos coisa, era isso. Ele ia pôr o lixo e levou com uma lata de pronto nos cornos. E o hospital nunca mais chegava, e tu estavas a agarrá-lo, e a abraçá-lo, e compunhas-lhe o cabelo ensopado em sangue, fala comigo desculpa desculpa, e na tua cabeça só pensavas não morras, pelo amor de deus não morras. Não morras com uma lata de pronto nos cornos. Sai mas é daí, pá! Não podes sentar-te noutro lado? Com tanta cadeira… Porque é que te empoleiras no parapeito? Se ficas tonta cais. Já nem fumas nem nada, não precisas de estar à janela. Não interessa que agora seja mais baixo, mata na mesma. Ou ficas aleijada. Xô daí, queres ficar aleijada? Teimosa… Ai! Estás a apertar-me o coração.
Desculpa, filho, é este cinto que encrava.
Este carro já deu o que tinha a dar.
(baseado em cintos reais)
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