quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

dizer.

A memória que guardo dos meus avós é a de que se amavam muito. Pode não ser verdade, podiam andar sempre às turras, mas, como me disse um médico com quem uma vez falei, o que interessa é o que sentimos, não o que realmente se passa. E o que eu sinto, o que eu ouvi dizer, é que eles tinham lutado muito para estarem juntos e que se amaram muito até ao fim. Mesmo quando tinham os filhos casados e os netos e bisnetos nascidos, continuavam a rezar o terço diariamente, para agradecer a nossa senhora de fátima a vida que tinham. Contaram-me que toda a vida o haviam feito, e que para eles era sagrado. Sagrado na aceção que agora usamos: não passavam sem isso. Havia muita gente na aldeia a rezar o terço ao fim do dia, mas os meus avós faziam-no não só porque eram católicos, praticantes, mas para cumprirem uma promessa, para agradecerem por terem ficado juntos. Não sei se o diziam um ao outro, que se amavam, que estavam contentes por estarem juntos, mas agradeciam, todos os dias agradeciam.

Volta e meia, o diabo dos netos lá entravam na cozinha, a falar alto e a correr, e num instante tinham de se pôr em sentido, voltar a sair de fininho, iam eles no segundo ou terceiro glória ao pai, ao filho e ao espírito santo. Eu era um desses netos, e não me lembro de alguma vez ter dado a devida importância àquele momento do dia, em que não podíamos incomodar. Agora dou. Eles nunca souberam, talvez saibam agora, mas sempre que os visito no cemitério, agora dou. Em lamego, rezávamos o terço todos os dias, mas só em maio, mês de maria, na capela do espírito santo, lá está, aquele a quem os avós davam a glória ao fim de dez avé-marias. Lembro-me de termos passado a ir só à sexta e ao sábado, depois a não ir, iam só os meus pais. E era bom, porque eles encontravam os amigos deles, e eu encontrava os meus. E não sei se eles sabem, mas para nós era bom.

Quando o meu avô morreu, a avó foi buscar refúgio a um centro de dia, onde ia de vez em quando conversar com umas “amigas”, e onde começou a fazer patchwork para passar o tempo. Não sei se alguma vez o meu avô se tinha dado conta da arte dela, ou talvez tenha dado depois de se ir, e ela não sabia, chamava-lhe “trapos”, mas o que fazia era patchwork. Ao longo de anos, enquanto a vista deixou, fez coisas lindas, multiplicando almofadas, colchas, sacos, tapetes, carpetes. Tudo em patchwork. Fez coisas lindas que deu a muita gente. Uns não terão dado valor. Outros ainda hoje observam a minúcia dos alinhamentos, tão inacreditáveis vindos de alguém que era tão despachada, que não parava, que poucas vezes se tinha sentada, que andava sempre com o carrapito e tantas vezes despenteada, com o cabelo no ar, assim como eu quando apanho o cabelo e me ponho a correr.

Quando engravidei, aos 16, foi das poucas que me disseram: “Oh, filha: não és a primeira, nem serás a última.” E essas palavras puseram-me sempre essa avó numa prateleira especial do coração. Quando o meu bebé nasceu, ofereceu-me uma colcha de patchwork para o berço e uma minialmofada para o enfeitar. Ambas as peças são lindas, e eu acho que lhe agradeci, sim, mas nunca lhe disse o quão maravilhosas eram, o que significavam. Não, só lhe agradeci, terei agradecido, mas nem disso me lembro bem. A cama do meu rebento estava a trezentos quilómetros de distância, e não sei se ela alguma vez se apercebeu do quanto eu gostava daquilo, de como lá ficava bem.
 
Um dia, fiz anos, não sei quantos, e deu-me um saquinho. Era um patchwork diferente, feito de mil tirinhas muito finas encadeadas umas nas outras. Recebi outras coisas nesse aniversário, um ou dois livros, umas peças de roupa, francamente não me lembro, estou aqui a inventar. Desculpem-me os afetados pela minha fraca memória, mas não me lembro do que recebi, nem de quem; não sei se ainda guardo as coisas, não sei se ainda as tenho. O saco das tirinhas, esse, está pendurado na minha cozinha e é ideal para eu guardar o pão. Não sei se ela sabe, talvez saiba, mas desse aniversário só me lembro dessa prenda.

Quando a avó morreu, a minha mãe ensinou-me a coser a direito na máquina de costura e, aos poucos, comecei a ganhar o gosto de juntar os trapos (estar-me-ia no sangue?). A avó nunca soube, ou talvez saiba, mas costurar é das coisas que melhor me fazem para esvaziar a cabeça e acalmar a alma. Ela nunca soube, ou talvez saiba, mas de cada vez que alguém visita a minha casa, gabam-se-lhe as almofadas, e os tapetes, e o saco, e a tal colcha com a minialmofada, que agora só decora o local onde a ponho, que já não tenho berço nem nada. Perguntam-me sempre se fui eu que fiz.

Tenho um tesouro cá em casa e eles não sabem. Ou talvez saibam, mas eu nunca lhes disse.
Um dia vou dizer.

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