domingo, 14 de dezembro de 2014

mulheres.

Não posso jurar, mas a senhora que estava à minha frente na fila poderá não ter pago por tudo o que meteu nos sacos. 

Colei-me a ela tipo lapa, não só porque tinha atrás de mim uma fila grande, cujo primeiro elemento tresandava a vinho, como queria que ela por favor se despachasse para eu pagar o pãozito quente que o meu periquito gosta de comer quando sai da escola ao fim do dia.

Estávamos naquelas caixas express, que agora são moda na maioria dos supermercados, onde só passam os clientes que têm compras de mão, de cesto ou de troley, mesmo que seja um troley a transbordar. Este era o caso: à minha frente estavam mil produtos prontos a serem passados um a um, e eu queria pagar com o alacard o meu pãozito, até porque não trazia um tostão no bolso, nem havia bolsos no meu vestido, e eu tinha mais é que esperar que a única caixa que permitia pagar com cartões vagasse.

Não pude evitar mirar a senhora (para onde mais é que se olha quando se está à espera nestes sítios?): passou o papel higiénico, bip, “coloque o artigo no saco”, umas toalhitas, bip, “coloque o artigo no saco”, um quilo de batatas, bip, “coloque o artigo no saco”, um pack de quatro iogurtes com um chocolate escondido por baixo, “bip, aguarde pela assistente”, um olhar para a supervisora do tipo esta-coisa-está-a-encravar-e-eu-não-faço-ideia-porquê, “pode continuar as suas compras”, duas latas de salsichas, bip, “coloque o artigo no saco”, bip, “coloque o artigo no saco”, duas latas de atum, bip, “coloque o artigo no saco”, bip, “coloque o artigo no saco”, um pack de quatro bolachas-maria com outra coisa qualquer escondida por baixo, bip, “aguarde pela assistente”, encolher de ombros e suspiro de enfado, “pode continuar as suas compras”, bip, bip, bip ,bip...

A máquina continuava a gritar à empregada: “Olha lá “AGUARDE PELA ASSISTENTE!”, estou-te a dizer “AGUARDE PELA ASSISTENTE”! O que quer dizer “AGUARDE PELA ASSISTENTE”, hem?” Mas o problema estava na balança, obviamente, ou no facto de o cartão de descontos ter sido passado no início “e a máquina deve estar baralhada”, bip, bip, bip, e sempre um “pode continuar as suas compras”.

Tive um dilema: era gritante o que estava a ver, nitidamente aquela mulher a roubar à minha frente, e eu não estava a denunciar a situação, mas podia estar a ver mal, talvez não tão nitidamente, a avaliar mal a situação, que tenho eu a ver com isso?, a empregada poderia ser despedida, dinheiro em falta na caixa e acusações de incompetência, e como seria a vida daquela mulher que roubava comida, pouco mais do que comida era o que ela tinha naquele troley, e da outra, que tentava manter o seu trabalho a custo ou não queria mais trabalhar naquela seca de serviço, a saltitar de cliente em cliente, a resolver problemas de balanças mal calibradas, e o que aconteceria se eu denunciasse e se tivesse razão, e se não tivesse razão e a denunciasse, e que direito tinha eu de a denunciar, quando a mulher podia estar numa situação que não lhe permitia pagar por tudo o que levava naquele troley a abarrotar, que tipo de vida tinha aquela mulher que trabalhava ali, aquelas mulheres.

Inseriu o cartão de pagamento, tirou o recibo, agarrou nos sacos das compras. À saída, desejou uma boa tarde à assistente e disse “até amanhã”.

Fiquei a pensar nela até chegar à creche. Como sempre, o Henrique quis comer meio pão. E eu não tinha comprado mais nada. Afinal, tinha o jantar adiantado. E ao preço a que as coisas estão isto é um roubo.

Sem comentários:

Enviar um comentário