Seis centímetros de indicador batiam, toc-toc-toc, na montra de vidro, e os olhos que olhavam para o "café corto" que eu bebia pediam um donuts estragado. Quer dizer: nenhum de nós sabia que o bolo não estava bom, mas a verdade é que se tratava de um donuts estragado. Paguei o bolo estragado e dei o bolo estragado ao miúdo, que comeu o bolo estragado, a meio perguntou se eu não queria um pouco de bolo estragado e cinco horas depois vomitou o bolo estragado.
Quando o mais velho era pequeno, um dos oftalmologistas que o seguiam proibiu-o de jogar à bola (não podia correr o risco de receber uma bolada na tola), de andar de carrinhos de choque (o impacto podia ser fatal para o que restava da sua visão), de fazer o pino, etc., etc. Quem olha para ele agora não acredita que o meu João já foi gordito, já odiou desporto, não sabia a resposta a perguntas simples como o que queria ser quando fosse grande ou o que gostava de fazer nos tempos livres.
A primeira vez que nos pediu algo, pôs-nos nas mãos uma decisão difícil. Ele queria jogar goalball, e era mesmo isso que queria. E, não obstante tratar-se de uma modalidade em que apanhar boladas e sofrer impactos faz parte do jogo, demos por nós a ir buscar a balança.
O goalball representou para mim o início da mudança. Lentamente começou a aparecer interesse em algo, surgiu motivação, realização e, mais importante que tudo, valorização pessoal, um salto de gigante em defesa da auto-estima subestimada.
Não foi uma decisão fácil. Os primeiros treinos eram de uma violência atroz... para nós. Lembro-me de ver o primeiro treino de defesa, posição deitado de lado, ancas no chão, braços esticados e olhos vendados, e de o treinador ordenar o início dos tiros. A bola de goalball pesa tanto ou mais do que uma bola de básquete, e era lançada em força contra os abdominais dele, que se entesavam para defender e ganhar calo, enquanto eu saía disparada para o balneário, a fugir daqueles murros no meu estômago, a ver as lágrimas cair de uma assentada e a questionar o meu papel de mãe.
Entretanto, passaram seis anos e eu mudei, e ele mudou. Há uns três anos que a hipótese de ele sair do país para estudar apareceu. Há dois anos que fala maravilhado do apoio dado ao goalball em Espanha. Há um ano acordámos deixá-lo partir.
Nem sempre tomamos as decisões acertadas em relação aos nossos filhos, e há consequências graves de decisões mal tomadas.
As decisões bem tomadas também têm consequências, felizmente boas. E são essas que nos dão força para lutar, para não desanimar, para trabalhar mais para ter mais dinheiro.
Mais tarde, o pequenito acabou por me dizer que o donuts nem lhe tinha sabido bem, mas que não sabia que, tendo-o pedido, o poderia recusar. E então expliquei-lhe que somos sempre livres dizer que sim ou que não, independentemente do que nos aconselham. Acertar ou não é uma questão de sorte. E de estar atento aos sinais.
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