Era um concerto para bebés. Tinha-a convidado
para vir connosco e trazer o filho. Ou ela convidou-me a mim, já nem sei bem. O
meu rapaz é mais velho, coisa de um ano e tal, e o dela tinha meses, mal se
sentava, lindo o puto, sempre a sorrir.
A piada destes espetáculos é que os
miúdos podem ser deixados “à solta”, a andar, a gatinhar, sobem à plataforma
onde estão os músicos a tocar os instrumentos e enfiam a mão pelo saxofone
acima, puxam as cordas do violoncelo, levam os ferrinhos à boca, tudo com a
inocência de quem não percebe, de quem não quer saber se está ou não a
atrapalhar.
Não me lembro já se foi planeado ou
se simplesmente aconteceu. Quando demos por ela, tínhamos os filhos trocados. O
meu miúdo no colo dela; o dela no meu.
De onde estávamos, dava para ver o
Henrique fascinado com tanta cor, tanta música, tantos meninos, nitidamente
mais à vontade do que o bebé dela, pecanito, no meu colo. Eu estava de pernas à
chinês e ele, amparado por elas, olhava o mundo e palrava e sorria. E eu sorria
também.
Até que o deixei cair. Deixei o bebé
cair. Como? Como uma cadeira de baloiço sem travão, como uma árvore, como uma
estante desengonçada, como um desmaio, como é possível?!, aquele bebé, que não
se segurava bem como qualquer bebé da idade dele, tinha-se precipitado para a
frente com o ritmo da música e, bum!, tinha batido com a testa no chão. Eu, que
guardava o bebé, em cujo colo a mãe o tinha confiado, estava distraída (com a
música? Com o meu filho? Com os artistas?) e tinha deixado o bebé bater com a
cabeça no chão.
Os gritos fizeram-nos sair da sala.
Com o meu ao colo, eu pedia desculpa, dizia para não se preocupar, que era
mesmo assim, que volta e meia os bebés caíam. Bem sabia que ele nunca havia
caído antes, já tínhamos falado nisso e ele nunca havia caído, e agora caía
comigo e a testa começava a inchar, e ele estava a ganhar um galo, e a mãe, preocupada,
pois que ele nunca tinha caído, e agora estava a chorar porque lhe doía. E eu
reprovava. Naquele teste eu chumbava.
Demorei a levantar-me nos dias
seguintes. Demorei a erguer a cabeça. A sério. De rastos, tinha ouvido, tinha
lido nos olhos daquela mãe a irresponsabilidade, a incompetência, a
incapacidade de estar sequer sentada a amparar um bebé de meses. Carreguei
comigo aquele fardo sempre que a vi depois daquele domingo e lhe perguntei como
o puto estava. Não é nada exagero. Então se sonhei com isso… Como se diz?
Fiquei incomodada. Que importa que seja exagero; estou-me nas tintas. Fiquei
incomodada. Muito. Eu deixei cair o bebé dela. Bum!
Até que um dia voltámos a sair os
quatro. E eu percebi que então ele já caía. Que o pai já o deixava cair, que a
mãe já o deixava cair (não é que se ande para aí a deixar cair os miúdos, mas é
mesmo assim: os miúdos caem; e as mães contam que os miúdos caem). Que ele caía
e ficava com um galo; dois galos quando caía duas vezes no mesmo dia; que ele
batia com a testa na gaveta aberta onde quase trilhava os dedos. E então já era
normal ele cair, isso já acontecia.
E demorei a engolir. Sorria e
custou-me a sorrir.
Até que, como o galo, lá passou. E
volta e meia há outra coisa qualquer que deixo cair e uma pessoa que me julga e
me reprova. E por muito que explique que é normal, digo, que me explique a mim
própria que é normal, que é normal falhar, que todos falhamos meu deus e que
essas coisas acontecem, demoro sempre uns dias a esquecer a voz a dizer que fiz
errado, que parti, que estraguei.
Talvez por isto a mulher-a-dias
esconde o caco partido, a criança tem medo de desenhar para não ser gozada
pelos rabiscos e o rapaz não admite que gosta de cor-de-rosa ou de bonecas.
Não se pode falhar, que a sociedade
não deixa. Quando a sociedade não se rala, a consciência não o permite. E, quando
o permite, isso não passa em branco. Nunca. Mais que não seja para nós próprios.
E até podemos andar de nariz
empinado com a mania do sabe-tudo, arranjadas com uma bela figura e um batom
nos lábios, que falhamos e logo perdemos a cor. E o sorriso.
Bolas, acabou. Tenho de trazer desmaquilhante.
Sem comentários:
Enviar um comentário