domingo, 14 de dezembro de 2014

o galo.

Era um concerto para bebés. Tinha-a convidado para vir connosco e trazer o filho. Ou ela convidou-me a mim, já nem sei bem. O meu rapaz é mais velho, coisa de um ano e tal, e o dela tinha meses, mal se sentava, lindo o puto, sempre a sorrir.

A piada destes espetáculos é que os miúdos podem ser deixados “à solta”, a andar, a gatinhar, sobem à plataforma onde estão os músicos a tocar os instrumentos e enfiam a mão pelo saxofone acima, puxam as cordas do violoncelo, levam os ferrinhos à boca, tudo com a inocência de quem não percebe, de quem não quer saber se está ou não a atrapalhar.

Não me lembro já se foi planeado ou se simplesmente aconteceu. Quando demos por ela, tínhamos os filhos trocados. O meu miúdo no colo dela; o dela no meu.

De onde estávamos, dava para ver o Henrique fascinado com tanta cor, tanta música, tantos meninos, nitidamente mais à vontade do que o bebé dela, pecanito, no meu colo. Eu estava de pernas à chinês e ele, amparado por elas, olhava o mundo e palrava e sorria. E eu sorria também.

Até que o deixei cair. Deixei o bebé cair. Como? Como uma cadeira de baloiço sem travão, como uma árvore, como uma estante desengonçada, como um desmaio, como é possível?!, aquele bebé, que não se segurava bem como qualquer bebé da idade dele, tinha-se precipitado para a frente com o ritmo da música e, bum!, tinha batido com a testa no chão. Eu, que guardava o bebé, em cujo colo a mãe o tinha confiado, estava distraída (com a música? Com o meu filho? Com os artistas?) e tinha deixado o bebé bater com a cabeça no chão.

Os gritos fizeram-nos sair da sala. Com o meu ao colo, eu pedia desculpa, dizia para não se preocupar, que era mesmo assim, que volta e meia os bebés caíam. Bem sabia que ele nunca havia caído antes, já tínhamos falado nisso e ele nunca havia caído, e agora caía comigo e a testa começava a inchar, e ele estava a ganhar um galo, e a mãe, preocupada, pois que ele nunca tinha caído, e agora estava a chorar porque lhe doía. E eu reprovava. Naquele teste eu chumbava.

Demorei a levantar-me nos dias seguintes. Demorei a erguer a cabeça. A sério. De rastos, tinha ouvido, tinha lido nos olhos daquela mãe a irresponsabilidade, a incompetência, a incapacidade de estar sequer sentada a amparar um bebé de meses. Carreguei comigo aquele fardo sempre que a vi depois daquele domingo e lhe perguntei como o puto estava. Não é nada exagero. Então se sonhei com isso… Como se diz? Fiquei incomodada. Que importa que seja exagero; estou-me nas tintas. Fiquei incomodada. Muito. Eu deixei cair o bebé dela. Bum!

Até que um dia voltámos a sair os quatro. E eu percebi que então ele já caía. Que o pai já o deixava cair, que a mãe já o deixava cair (não é que se ande para aí a deixar cair os miúdos, mas é mesmo assim: os miúdos caem; e as mães contam que os miúdos caem). Que ele caía e ficava com um galo; dois galos quando caía duas vezes no mesmo dia; que ele batia com a testa na gaveta aberta onde quase trilhava os dedos. E então já era normal ele cair, isso já acontecia.

E demorei a engolir. Sorria e custou-me a sorrir.

Até que, como o galo, lá passou. E volta e meia há outra coisa qualquer que deixo cair e uma pessoa que me julga e me reprova. E por muito que explique que é normal, digo, que me explique a mim própria que é normal, que é normal falhar, que todos falhamos meu deus e que essas coisas acontecem, demoro sempre uns dias a esquecer a voz a dizer que fiz errado, que parti, que estraguei.

Talvez por isto a mulher-a-dias esconde o caco partido, a criança tem medo de desenhar para não ser gozada pelos rabiscos e o rapaz não admite que gosta de cor-de-rosa ou de bonecas.

Não se pode falhar, que a sociedade não deixa. Quando a sociedade não se rala, a consciência não o permite. E, quando o permite, isso não passa em branco. Nunca. Mais que não seja para nós próprios.

E até podemos andar de nariz empinado com a mania do sabe-tudo, arranjadas com uma bela figura e um batom nos lábios, que falhamos e logo perdemos a cor. E o sorriso.

Bolas, acabou. Tenho de trazer desmaquilhante.

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