sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

hitchcock.

O Wiki adora brincar com coisas sérias. Gosta de me acompanhar quando costuro enquanto ele corta os tecidos com uma tesoura das perigosas; gosta de limpar o pó e a banca; senta-se no sofá com uma pilha de livros e conta histórias a uma turma de meninos imaginários que vai mandando estar quietos, sentar, que põe de castigo, enquanto lê e mostra as ilustrações, de um lado… para o outro… de um lado… para o outro, para todos verem, como se fosse uma ventoinha.

Há três anos que brinca com a minicozinha do Ikea, a que fomos acrescentando acessórios à escala, depois uma panela a sério, uma escumadeira a sério e umas colheres de pau da minha gaveta, o meu funil, o meu sacode-saladas. Depois dos alimentos a fingir (de plástico e de tecido), juntámos comida seca (experimentámos água e vegetais de verdade, e a coisa não correu bem; um dia conto): grão, feijão, massas de variedades diferentes, arroz. Quando comecei a perceber que já não lhe bastava o seu microespaço, emprestadei-lhe o miniescadote, para ele chegar ao fogão, ao meu fogão, e passei-lhe a minha faca que corta mal mas não corta dedos. Hoje, aos cinco anos, já prepara massa e arroz (não os escorre, que não sou louca, mas sabe os passos todos – mexer um refogado, pôr a quantidade de sal, a dose certa de azeite, a pitada de pimenta), faz ovos mexidos com salsichas, grelha bifes, corta cogumelos e arranja as couves e os brócolos para cozer. Adora fazê-lo, e dá gozo filmá-lo com os olhos. Claro que também gosta de brincar a tudo o resto: andar de bicicleta desde que vá à frente, fazer puzzles desde que alguém lhe descubra as peças que ele põe no sítio certo, jogar ao jogo da glória ou ao peixinho desde que seja ele a ganhar, construir pontes desde que o ajude, fazer uma cidade desde que eu esteja por perto.

Ao domingo, nunca sou muito rígida a obrigá-lo a arrumar o que desarruma. Quero que aproveite, é o último dia. À noite, quando regresso depois de o deixar com o pai, ponho tudo na prateleira certa, apanho os legos espalhados pela casa, acomodo os carrinhos para caberem dentro da caixa e sento-me em frente à cozinha dele. Pernas à chinês, separo os legumes a fingir das frutas a fingir, o pão a fingir do ovo, do bacon, das rodelas de pimento a fingir. Há um cesto para as frutas e outro para o pão, uma ceira para os legumes, um caixotinho para as latas com os legumes secos, uma travessa para as proteínas (peixe, ovos, fiambre, mortadela, salsichas)…

Começo por arrumar os miniguardanapos, a minipega e a miniluva no cesto. Ponho o miniesfregão ao lado da minibanca e atiro o meu pano da loiça a servir de tapete para a máquina de lavar. Feito isto, perco todo o tempo do mundo a separar o spaguetti partido aos bocadinhos do tagliatelli, o farfalle do grão, o feijão do arroz. Assim, na semana seguinte, quando ele chega, está tudo pronto para ser cozinhado outra vez.

Normalmente, é fácil separar as coisas nas latas. Exceto quando caem ao chão. Aí normalmente aspiro; como é só um bago ou outro, não me fico a sentir mal. Não há paciência para estar a apanhar um a um e, quando os arrastamos para facilitar a coisa, trazemos migalhas, cotão e cabelos, e infelizmente nem eu nem ele sabemos cozinhar com isso.

Há uns tempos, num jantar em que ele servia uma sobremesa feita com feijão cru, queijo de plástico, um ovo cozido de pano e umas massarocas de variedade diferente, foi perguntar a um dos meus amigos como se chamava aquela coisa que ele tinha na ponta do dedo: aquela coisa mexia e era uma minhoca. Sinal de alarme, luzes vermelhas, sirenes, em dez segundos as comidas a sério foram parar ao lixo, com a promessa de depois lhe voltar a encher as latas.

Quando fiz isso, tinha a avó dele, a minha mãe, a olhar para mim. Melhor, tinha dez, vinte metros de avó sobre mim, tinha uma avó gigante sobre a minha cabeça: eu pequenina lá no fundo a querer encher as latas até acima com massas, feijão, grão, arroz, e a mãe-censura, vulgo voz da consciência, a dizer “já chega, é comida a sério, ele estraga isso tudo”, e eu ripostava que não, assegurava-lhe que não, “acredita em mim”, que ele precisava de um abastecimento daqueles uma vez a cada três anos, e era só, e depois que eu lhe separava tudo, que não se preocupasse, aquilo dava para muito tempo.

Isto foi há duas semanas. No sábado veio perguntar-me se podia ir buscar o aspirador. Isto depois de eu ouvir, não queria acreditar mas tinha a certeza de que era isso, centenas de bagos de arroz e massas e feijão e grão a espalharem-se pelo chão. Entrei na cozinha em passo lento, como naqueles filmes em que o protagonista chega a casa e está a mulher morta atrás da cama, e comecei a aproximar-me da cena. A aproximar-me. A aproximar-me. Não fui capaz de aspirar. Estivemos a apanhar cada grãozinho e a voltar a metê-lo nas panelas e nas latas.
Não conto quanto demorámos. Nem sei. Nos entretantos, ele explicava como tinha tentado verter o conteúdo de uma panela grande para dentro de uma minicaneca, e de como inacreditavelmente não tinha cabido. E eu repetia: “Isto tem de dar para três anos, estás a perceber, Wiki?” E ele: “Amanhã depois damos um jeitinho”, olhos a brilhar pela antevisão da brincadeira, “damos um jeitinho com o aspirador primeiro, ou com a vassoura e a pá, e depois com a esfregona”.

E eu, rabo no ar, a pensar que as mães de dez metros têm sempre razão. E é verdade: sabem tudo, cozinham maravilhosamente e têm sempre razão.

(Publicado no meu facebook a 29 de outubro de 2014)

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